São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Os amigos

ADRIANE GALISTEU

Vi aqueles homens de fibra e de aço chorarem como criancinhas. Alguns deles recostavam seu rosto no meu ombro –pediam socorro logo a quem? A morte do companheiro de pista expunha a fragilidade deles. Poderia ter acontecido comigo –é o que com certeza passava na cabeça de cada um.
Pois bem, naquele dia de luto e dor, ficou provado que circula vida nas veias dos super-heróis da quilometragem. Eles vibram, amam, choram. Têm outros sentimentos, além da ânsia da velocidade, com cara de quem não está nem aí para o perigo. Estão, sim.
Em Mônaco, em maio de 1993, comecei a travar contato com esses moços e com suas histórias arriscadas e atrapalhadas. Ayrton, que adorava atazanar os amigos, era um coroinha diante de outros pilotos. Dizia, por exemplo, com toda a seriedade:
– Eu tenho um amigo louco – pronunciava a palavra louco como um psiquiatra a pronunciaria.
– O nome dele é Gerhard Berger.
Companheiro de escuderia na McLaren, o grandalhão austríaco conviveu com Senna, numa certa época, mais do que os outros pilotos. Senna o conhecia bem. Gostava um bocado dele. O sentimento era recíproco. Quando tudo aconteceu, Berger tomou um avião na Europa, desembarcou em São Paulo para o velório e o enterro, voltou na mesma noite para a Europa porque não queria perder o velório e o enterro de seu compatriota Roland Ratzenberger, a outra vítima do massacre de Ímola. Nessa, acabou esquecendo a mala no hotel.
Béco tinha pânico das brincadeiras de Berger. Sistemático que só ele, Ayrton não largava uma pasta tipo 007 em que guardava suas pequenas preciosidades, tipo agenda, passaporte, caneta, uma mininécessaire, um suéter e um exemplar da Bíblia. A fé de Ayrton era uma crença íntima, não uma exibição pública, mas a leitura dos salmos e dos versículos sagrados era um hábito de todas as noites, um relax espiritual para facilitar um sono que, antes das corridas, quase sempre custava a chegar.
À melhor história com Berger, eu não assisti. Mas conheço bem. Os dois deixavam, de helicóptero, o hotel Villa d'Este, às margens do deslumbrante lago de Como, antes de um GP em Monza. O Ayrton com sua indefectível pastinha, o Berger simulando um certo interesse pela paisagem. Ayrton se distraiu, o austríaco lhe arrancou a pasta da mão, abriu a porta do helicóptero já em movimento e arremessou o precioso objeto para as águas do lago. Errou por pouco: a pasta 007 esborrachou no gramado, quase no lago.
Ayrton guardou a vingança na geladeira. Esperou até o GP da Austrália. Nesse dia, quem dividia o quarto com ele era seu primo Fábio Machado. A dupla surrupiou da camareira uma chave mestra, invadiu o quarto de Berger e Ana, a simpática portuguesinha que é namorada dele há muito tempo, derrubou na banheira as roupas dos dois, encheu de água até em cima, entornou xampu, enfeitou o ventilador de pás com peças íntimas do casal e sumiu, antes que Ana e Berger reaparecessem.
Berger pode ser louco, mas não é idiota. E Ayrton e Fábio não duvidavam de que vinha troco a caminho. Aparentemente, não veio. Os quatro tinham combinado de jantar naquela noite. Ayrton e Fábio trocaram um olhar cúmplice quando viram que tanto Berger quanto Ana, não por acaso, vestiam as mesmas roupas da tarde. Ficaram firmes. O jantar transcorreu sem uma queixa, um pio sobre roupa, banheira, quarto –nada, nada. Ficaram elas por elas, imaginou Ayrton.
Dias depois, passada a prova, Ayrton desembarca a negócios em Buenos Aires. Não havia lugar no mundo em que um porteiro, um motorista, um policial não o reconhecesse e não lhe manifestasse seu entusiasmo –além do tradicional pedido de autógrafo. Surpresa: o guarda da imigração argentina fecha a cara, irritado, pede licença e tranca-se numa sala, com outros oficiais. Demorada conferência. Volta um senhor severo, visivelmente mais graduado:
– Temos todo o respeito pelo señor Ayrton Senna – começou o oficial.
– Pero hay un problemita.
O passaporte. Constrangimento. Passou-lhe o documento. No lugar em que deveria estar aquela foto 5 x 7, colorida e, se possível, sorridente, estava uma donzela nua, sem um só trapinho a vesti-la e, pior, em posição ginecológica.
– Berger... Berger... – espumou Senna.
Desfazendo-se em desculpas, o piloto brasileiro explicou às autoridades argentinas que aquela grosseira colagem era vingança de "um austríaco maluco".
Nossa convivência com Berger era íntima e social. Aliás, se havia alguma coisa que Ayrton sabia separar era a relação gostosa que rolava num jantar, numa viagem ou num passeio, e uma conversa embebida em gasolina e cheia de palavrões técnicos que o Senna –aí, sim, o Senna– tinha de ter, às vezes, com um ou outro parceiro de pista. Trabalho e prazer –nada a ver.
Do Rubinho Barrichello, por exemplo, ele dizia coisas ótimas:
– Com um carro melhor, vai longe – previa.
Na verdade, ele se sentia padrinho dos nossos calouros, da jovem guarda brasileira do volante, o próprio Rubinho, Christian Fittipaldi, mas também do português Pedro Lamy e do escocês David Coulthard, que por ironia viria substituí-lo na Williams.
(...)
Damon Hill, Michael Andretti –que durou pouco na Fórmula 1. Para eles também Ayrton tinha palavras de amizade. Até onde eu saiba, pelo alemão Michael Schumacher ele mantinha, de início, só indiferença. Por uma única vez, recordo-me, estivemos lado a lado, Ayrton e eu, Schumacher e a mulher dele, uma alemã loira e bonita. Num show da Tina Turner –outra paixão do Béco– na Austrália, em 1993. Trocamos uma apresentação rápida e meia dúzia de palavras. Não havia intimidade possível com um sujeito que passou um show trepidante como quem estivesse assistindo a um concerto em Salzburgo.
Na temporada de 1994, quando o Benetton de Schumacher começou a dar um suor no Williams de Senna, nem assim Ayrton falava dele. Preocupava-o apenas o desempenho de sua própria máquina, e ponto final. Jamais se importou com aquele que chamava, secamente, de "o alemão" ou, ao pé da letra, "o sapateiro".
Alain Prost, sim, era uma pedra no sapato, ou na sapatilha. A crônica de seus duelos com Ayrton nas pistas vai permanecer na história do automobilismo. De parte a parte, ficaram ressentimentos, queixas, acusações de jogo sujo –e Senna, que odiava perder, teve de amargar o tetracampeonato do rival logo naquela temporada em que vivi intensamente a seu lado. Com Prost, chegou a ser uma relação de tipo mudar de calçada quando um via o outro. Mesas distantes em restaurantes, nos anos negros da hostilidade. Até os garçons tremiam. Mas o tempo foi curando as feridas. Num magnífico restaurante em que jantávamos em Milão, setembro de 1993, antes do GP de Monza, com o Braga, o tio Papagaio, aliás Galvão Bueno, e esposa, a tenista Monica Seles e a mãe, o Julian Jakobi e sua adorável mulher, Fiona, de repente Prost em pessoa veio a nossa mesa. Ayrton gelou, mas o pior já tinha passado. Prost estava, isso sim, mais à vontade: afinal, naquele ano o campeão foi ele, não o seu eterno rival.
Meu sexto sentido indica, porém, que a rivalidade dos dois tinha o tempero de um enorme respeito. Haviam dividido, não sem algumas farpas, o mesmo boxe, o mesmo time, o mesmo staff da McLaren por dois anos. Alain Prost era alguém -quando "o francês" vinha à baila, numa conversa entre amigos, uma certa cerimônia se impunha, a não ser quando Ayrton queria gozar a incompatibilidade dele com a chuva a as pistas molhadas. Prost desafiava Senna, Senna desafiava Prost, e foi essa estimulante competição, interrompida na temporada de 1994 com a aposentadoria do francês, que produziu aquele diálogo entre os dois, incrível, às vésperas do desastre de Imola. Quem assistiu ao abraço, como o Braguinha, custou a acreditar. Senna foi além:
-Estou sentindo a sua falta
-disse ele a Prost, em inglês.
A parte francesa dessa linda reconciliação entre as duas feras se traduziu no choro sincero de Alain Prost, diante do esquife do ex-rival. Falou-me, após o funeral, que ele também tinha morrido um pouco, junto com Ayrton Senna. Parecia meio deslocado naquele ambiente soturno e distante do Cemitério do Morumbi. Com a mão em meu braço, disse um comovido "conte comigo".
Houve um adversário de verdade na vida e na carreira de Ayrton Senna. Não se pode esperar palavras de rancor e ódio de quem lia a Bíblia como ele, mas acontecem situações de saia-justa que dizem tudo. Às vésperas do Grande Prêmio de Estoril, fomos num grupo grande experimentar aquela maravilha de cozinha portuguesa que é o restaurante Porto Santa Maria, na praia do Guincho, diante daquelas escarpas do cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa. Coisa dos deuses. Encomendado com antecedência pelo nosso anfitrião, o Braga, um linguado ao forno, cozido dentro de uma casca de sal grosso.
Chegamos e o maitre nos levou a uma mesa voltada para aquele mar e para aquele horizonte de onde, séculos atrás, uns malucos portugueses, a bordo de casquinhas tão frágeis quanto os carros de Fórmula 1, foram descobrir novos mundos. De repente, o Ayrton, sempre ligadíssimo, parou:
– Aqui, não. Vamos para outra mesa, bem longe.
Fincou pé, os outros convidados perplexos. Mas me sussurou ao ouvido:
– O indivíduo está aí.
A palavra, aqui entre nós, não foi propriamente indivíduo. Imaginei que era o Prost. Nada disso: o indivíduo atendia pelo nome de Nélson Piquet. Aí a coisa ficava de fato feia. É inútil voltar a esse assunto, depois do que se passou. Mas o silêncio de Piquet, no dia do enterro, foi significativo – por mais que amigos seus tentem me convencer de que a melhor manifestação de dignidade dele seria a ausência. Um dia, quem sabe, eu me convença disso. Hoje, não.
Tenho, a propósito, uma bela lembrança gravada na memória. Conheci, no circuto da Fórmula 1, um garotinho lindo, de uns cinco anos, acredito, que tinha uma especial veneração pelo Ayrton -e a amizade era recíproca. Circulava pelos boxes, antes das provas, levado pelas mãos de sua mãe, Sylvia, uma holandesa habituée dos pitlanes. O garoto se chama Nelsinho. Nélson Piquet Júnior.

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