São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 1994
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Milagres e malogros

LUIZ EDUARDO CERQUEIRA MAGALHÃES

``Muitos milagres há, mas o mais importante é o homem". (Sófocles, Antígone)
No dia 15 de outubro convencionou-se comemorar o dia do professor. Entre a melancolia e o esquecimento, os raros cumprimentos esvaneceram em meio à euforia comercial do dia da criança e às procissões pela padroeira do Brasil.
A festa vazia do professor contrasta com a imagem idealizada da infância, assim como se contrapõe ao apelo televisivo e otimista das peregrinações a Aparecida.
No dia do professor não se crê em milagres. Quase no avesso da vida, a educação brasileira assemelha-se a um paciente terminal.
Recentemente têm vindo a público reflexões sobre os limites da centralização da educação pelo Estado. A ineficiência administrativa, os recursos mal geridos e a incapacidade de avaliar a qualidade do ensino sugerem inépcia.
Contudo, as discussões têm evitado aprofundar o tema da qualidade profissional, que suscita reações corporativistas, tanto do professor quanto do proprietário de escola.
Em verdade, o cérebro desse organismo paralisado é o professor. Mais irremediável que salários e condições de trabalho é a anemia intelectual e informativa, o estado crítico da formação da maioria dos professores desse país.
O mais recente concurso público do Estado de São Paulo para professor III não diagnostica o mal, mas indica a gravidade do problema. Noventa por cento dos candidatos a professor de português apresentaram notas inferiores a 5, sendo que 45% dentre os reprovados não atingiram sequer média 3.
Entre os candidatos à área de matemática, os resultados foram ainda piores. No conjunto dos quase 100 mil professores que realizaram as provas, 8% foram aprovados.
Considere-se a responsabilidade do Estado nessa situação. Os candidatos já ministram aulas, a revelia de sua competência ou aprovação em concurso. A habilitação de ser professor lhes foi conferida por entidades educacionais, se não públicas, igualmente autorizadas pelo poder público, a quem compete avaliá-las.
Mesmo sem uma análise especializada dos dados relativos ao concurso, percebemos o despreparo profissional, evidenciado tanto por estes números constrangedores, quanto por seu efeito colateral: o contingente maciço de estudantes da escola pública sem possibilidades de sucesso nos vestibulares mais concorridos.
Sem dúvida, recursos orçamentários, centralismo burocrático e sindical são temas essenciais para a racionalização do sistema escolar brasileiro. Porém aprofundar a questão da qualidade dos cursos superiores que formam o professor tem sido mais difícil que a denúncia da ingerência administrativa do Estado.
Poucos ousam contestar a obrigação moral de tornar público o desempenho de instituições sustentadas pelo contribuinte. Mas, se esse argumento vem impondo às universidades públicas paulistas um sistema próprio de avaliação, quem de fato analisa a qualidade das instituições privadas?
Constitucionalmente, a atribuição pertence ao poder público. Na prática é o mercado de trabalho que define o perfil dos melhores profissionais e, portanto, da melhor formação.
Em várias áreas de atuação profissional, o currículo mais valorizado pressupõe 1º e 2º graus em escolas particulares e curso superior em escolas públicas.
Lamentavelmente, exceções a essa tese são raras.
Os professores de 1º e 2º graus que fizeram bons cursos, passaram pela pós-graduação e desenvolveram um repertório cultural razoável provavelmente estão contratados pelos colégios que exigem mais qualidade, pagam muito melhor e promovem uma educação responsável.
Paralelamente, a alta demanda por parte do Estado assegura aos milhares de professores precariamente licenciados um lugar desestimulante e mal remunerado em suas desaparelhadas escolas.
Contudo, se a má formação é notória, não se pode negar que os professores sejam antes de tudo vítimas desse mal gerado pelo histórico descaso do país por todos os bens de cultura.
Por outro lado, os atenuantes que vêm sendo aplicados não atingem estruturalmente os problemas; é difícil avaliar o retorno qualitativo de investimentos maciços do governo em cursos suplementares ou de aperfeiçoamento a professores.
Além disso, a melhoria do padrão salarial, embora urgente, não garantiria competência profissional, do mesmo modo que a incompetência não se justifica por motivo de baixos salários.
No campo educacional, o erro é quase sempre irreversível. O saber é um valor precioso à construção do homem e da nação. Formação frágil equivale à perda irremediável, não de um conjunto de produtos substituíveis, mas de uma possibilidade melhor de futuro.
Se acontecesse um milagre, uma descoberta extraordinária que nos conduzisse à fartura econômica, permitindo, então, a renovação imediata das estruturas educacionais, a dignificação do professor através de salários justos, além do aparelhamento dos edifícios escolares... Se fossem essas as circunstâncias, quanto tempo ainda demoraríamos para poder oferecer um ensino de qualidade? Quanto tempo levaria a criação do professor que protagonizasse essa fábula? Onde obteríamos o cérebro que comandasse o corpo súbita e milagrosamente ressuscitado?

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