São Paulo, sexta-feira, 28 de outubro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ricardo Piglia tenta decifrar ofício literário

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A editora Iluminuras acaba de publicar um livro pequeno, despretensioso e inteligentíssimo. Trata-se de ``O Laboratório do Escritor", do argentino Ricardo Piglia. Compõe-se de um conto –``O Fim da Viagem"–, de um texto teórico –``Teses sobre o Conto"– e de entrevistas concedidas pelo autor a revistas literárias.
Não é livro para obter sucesso excepcional de público. Interessa, sobretudo, às pessoas que se dedicam a escrever ou a pensar sobre teoria literária. Mas, de forma quase casual, sem nenhuma formalidade universitária, Ricardo Piglia exibe pensamentos originais e fecundos sobre o seu ofício de escritor.
Vários de seus livros foram traduzidos para o português, sempre pela editora Iluminuras: ``Respiração Artificial", ``Nome Falso", ``Prisão Perpétua", ``A Cidade Ausente".
Você já leu? Eu não. Só depois de topar com ``O Laboratório do Escritor" resolvi aventurar-me um pouco nas obras de Piglia. ``Prisão Perpétua" tem contos excelentes.
O diabo é que ninguém dá conta do que se publica no Brasil. Mesmo alguém que escreve resenhas para jornal não consegue dar atenção a 90% dos livros que mereceriam ser lidos. Por exemplo: a Companhia das Letras acaba de publicar ``Viagem ao Fim da Noite", do famoso Louis Ferdinand Céline. Acho que seria mais bonito se traduzissem o título por ``Viagem ao Fundo da Noite". Ouço elogios enormes ao novo romance de Carlos Sussekind. E os italianos, então? Vigiam-me, da estante abarrotada, ``Anjo Negro", de Antonio Tabucchi (ed. Rocco), os ``Poemas", de Michelangelo Buonarrotti (ed. Imago), e o espantoso, exuberante, maravilhosamente traduzido ``Hilarotragedia", de Giorgio Manganelli, que de tão bom parei na metade.
Falo dos italianos porque me encomendaram, há algum tempo, uma resenha de ``A Adalgisa", de Carlo Emilio Gadda (ed. Rocco). Foi uma descoberta daquelas que só se fazem de vez em quando.
Mas o que é que se pode fazer? A quantidade de livros bons à nossa disposição excede o tempo de uma vida normal. E eu não li ``A Consciência de Zeno", de Italo Svevo, nem ``Os Noivos", clássico de Manzoni.
Nesse ponto, a obrigação de escrever resenhas oferece um prazer ambíguo. Pedem-me para fazer uma resenha. Bem, não era exatamente o livro que eu queria ler; mas há surpresas enormes. Faço anualmente um esforço para entregar-me aos ``grandes livros": ``A Montanha Mágica" foi para mim uma descoberta tardia, em umas férias de verão.
E quem ainda não leu ``A Divina Comédia", o ``Dom Quixote", ``O Vermelho e o Negro", ``Em Busca do Tempo Perdido", a ``Odisséia", ``Guerra e Paz" por que haverá de dar atenção aos últimos lançamentos das editoras sofisticadas?
No ambiente argentino, conhecemos Borges e Cortázar. Quem leu o ``Facundo", de Sarmiento, ou o ``Martin Fierro", de Hernández? Para não falar de Lungnes, Macedónio Fernández, do ``Don Segundo Sombra", de Guiraldes, de Horacio Quiroga, de Roberto Arlt?
A Argentina é um mundo inteiro. Davi Arrigucci, crítico brasileiro, referiu-se ao ``sistema literário argentino" –tradições e referências culturais que cada novo escritor, naquele país, deve absorver.
O fato é que topei com este livro de Ricardo Piglia, ``O Laboratório do Escritor". Sem conhecer sequer a metade dos autores que ele cita, fiquei encantado com o que ele diz sobre a literatura.
O texto mais importante do livro são suas ``Teses sobre o Conto". Não resisto a uma citação:
``Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: `Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida'. A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não-escrita. Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias."
Piglia desenvolve, em poucas páginas, esta descoberta: a de que um conto sempre conta duas histórias. Uma secreta, oculta; outra explícita.
Só por isso vale a pena ler ``O Laboratório do Escritor". Mas as coisas não param aí.
Numa entrevista, Piglia fala sobre os seus vícios. Durante anos, foi um maníaco da natação. Parou de nadar. E aderiu ao tabagismo. ``Essa podia ser uma síntese de minha relação ao mesmo tempo tardia e substitutiva com os vícios. Uma coisa pela outra: essa é a estrutura da sociedade capitalista."
O que Piglia dizia sobre o conto não difere muito do que ele está dizendo sobre o vício: ``Uma coisa pela outra", uma história secreta atrás da história explícita, o fim da mania de natação substituído pela mania de fumar. Literatura é ``substituição".
Ricardo Piglia, como a maioria dos escritores modernos, é um fascinado pela literatura policial. A coisa começa com Borges, remete a Dostoievski, passa por Faulkner e Hemingway: hesita em Conrad, Dickens, Henry James.
Há algum tempo, arrisquei a seguinte hipótese: a mania policial dos escritores contemporâneos –Rubem Fonseca, por exemplo– era no fundo uma forma de nostalgia pela narrativa clássica, algo com começo, meio e fim, em oposição às liberdades frouxas do romance de vanguarda.
Lendo Ricardo Piglia, vejo que as coisas não são tão simples assim. Talvez ele chegue à essência da literatura quando diz: ``O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto". Em outro texto, Borges vinculava o ``fato estético" ao ato de revelação; penso no desvelamento, na ``alethéia" que tanto assunto deu ao filósofo Martin Heidegger.
E, se em toda obra literária há esse ``desvelamento", essa ``revelação" –um pequeno detalhe oferece a chave do comportamento de um personagem, por exemplo, ou um símbolo qualquer junta sentimento e subjetividade numa poesia–; se ``revelação" contida, administrada, é a essência do trabalho literário, então o gênero policial, com suas investigações e mistérios, talvez seja o gênero ``literário" por excelência.
É como se um conto policial ``revelasse" o segredo que existe em cada empreendimento literário. Se em todo conto há ``duas histórias", uma explícita, outra secreta –como quer Ricardo Piglia–, o romance de mistério ou a história de Sherlock Holmes fazem apenas mais explícita, e tomam como tema, uma procura da verdade da revelação, que mobiliza no fundo qualquer escritor, policial ou não.
Será isso mesmo? Tendo a acreditar que sim. O que não significa seguir, como se faz hoje em dia, as convenções policiais em cada livro que se pretenda escrever.
``O Laboratório do Escritor", de Ricardo Piglia, aborda assuntos como este. É um livro interessantíssimo, desde que você se interesse pela coisa.

Texto Anterior: Turismo arranja vaga pro Castor na cadeia
Próximo Texto: Tim Burton faz animação para criança esperta
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.