São Paulo, sexta-feira, 28 de outubro de 1994
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Costa avalia herança colonial

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O cinema em Portugal vive uma situação que se pode considerar privilegiada. Uma razoável garantia estatal, aliada a alguns investidores privados, tem sustentado ao longo dos anos uma produção pequena, mas de alto nível. Acima de tudo: em troca de orçamentos baixos, os diretores conseguem preservar uma total liberdade de criação.
Isso resulta, evidentemente, em filmes nem sempre voltados ao entretenimento do público, e às vezes mesmo avessos a ele. Talvez seja o caso de ``Casa de Lava", que tem cumprido a rotina de esvaziar os auditórios bem antes do final da projeção.
Como explicar, então, que o diretor Pedro Costa seja considerado, no meio cinematográfico português, a grande revelação do momento?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, no cinema português, pensar grande significa pensar pequeno. Não por acaso, o mestre octagenário Manoel de Oliveira frequentemente se dedica à filmagem de peças teatrais, muitas vezes num só ambiente e com pouquíssimos atores (``A Caixa", em exibição nesta Mostra, é um exemplo).
Também entre o restante dos cineastas a economia se faz notar em todos os sentidos, o que se compensa com a sofisticação da atuação dos atores, os textos complexos, um ritmo lento que impõe a reflexão.
Nada disso é novidade no cinema de autor europeu, e volta a aparecer em ``Casa de Lava". Mas este filme se distingue justamente por trazer à baila a discussão do enclausuramento português.
Narra-se a história de um negro cabo-verdiano, o operário Leão, acidentado numa obra em Lisboa. Ao vê-lo semimorto e em estado de amnésia, a enfermeira portuguesa Mariana toma a inusitada decisão de acompanhá-lo de volta à terra natal na expectativa de uma cura.
Na paisagem árida e coberta de lava, em Cabo Verde, o filme adquire matizes fantásticos. Como num sonho, Mariana persegue os nativos por entre as pedras sem jamais alcançá-los, confunde-se com o dialeto crioulo, a ela (e a nós brasileiros) tão familiar e ao mesmo tempo incompreensível.
Em tudo subjaz uma hostilidade, cujas origens, segundo se deixa entender, estão no passo colonial. Inútil tentar se integrar ou, mesmo, amar: fora de seu pequeno círculo português, Mariana permanecerá uma eterna estrangeira.
Costa optou pelo convencimento através da eloquência das imagens e da atmosfera, em lugar do discurso verbal, que no filme é uma parede e não um canal de comunicação entre os personagens.
Quem tiver um pouco de paciência com o ritmo lento, talvez se veja recompensado com essa visão original de uma faceta da relação entre Europa e África.

Filme: Casa de Lava
Direção: Pedro Costa
Elenco: Inês Medeiros, Isaach de Bankolé, Edith Scob
Onde: Belas Artes/ sala Portinari, hoje, às 19h

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