São Paulo, sexta-feira, 28 de outubro de 1994
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Livro do papa chega ao Brasil na segunda-feira

Pergunta – Não posso deixar de ver que este homem, que chamam de papa (pai em grego), é em si um mistério, um sinal de contradição. Até mesmo uma provocação, um ``escândalo", segundo aquilo que para muitos é o bom senso.
Com efeito, diante de um papa é preciso escolher. O chefe da igreja Católica é definido pela expressão: ``Vigário de Jesus Cristo". Ou seja, é considerado o homem que na Terra representa o Filho de Deus, que ``faz as vezes" da Segunda Pessoa do Deus trinitário. Isto é o que afirma cada papa de si mesmo. E os católicos acreditam nisso.
Todavia, segundo muitos outros, esta é uma pretensão absurda: para estes, o papa não é o representante de Deus. É, isto sim, a testemunha sobrevivente de antigos mitos e lendas que o homem de hoje não pode aceitar.
Portanto, diante de Sua Santidade é preciso fazer uma aposta, para usar a expressão de Pascal: ou o senhor é o enigmático testemunho vivo do Criador do universo, ou então é o maior protagonista de uma milenar ilusão.
Se é possível perguntar: o senhor nunca hesitou na sua certeza de um semelhante vínculo com Jesus Cristo e, portanto, com Deus? Nunca se fez perguntas e levantou problemas sobre a verdade daquele Credo que em cada missa repete e que proclama uma fé inaudita, da qual Sua Santidade é o fiador mais alto?
Resposta – (...) ``Não é preciso ter medo" quando o povo te chama Vigário de Cristo, quando te dizem Santo Padre, ou Vossa Santidade, ou usam frases semelhantes, que parecem até contrárias ao Evangelho. Com efeito, o próprio Cristo afirmou: ``A ninguém chameis de `pai'... porque um só é o vosso Pai, aquele que está nos céus. E não vos façais chamar `mestres', porque um só é o vosso Mestre, o Cristo" (Mt 23,9-10). Essas expressões, contudo, cresceram a partir de uma longa tradição. Entraram na linguagem comum e também não se deve ter medo delas.
Sempre que o Cristo exorta a ``não ter medo", sempre tem em mente tanto a Deus como o homem. Quer dizer: Não tenham medo de Deus, que é, segundo os filósofos, o absoluto transcendente. Não tenham medo de Deus, mas invoquem-no comigo: ``Pai nosso" (Mt 6,9).
(...)
Cristo é o sacramento, o sinal palpável, visível, do Deus invisível. Sacramento implica presença. Deus está conosco. Deus, infinitamente perfeito, não só está com o homem, mas Ele mesmo se fez homem em Jesus Cristo. Não tenham medo de Deus que se fez homem! Fui justamente o que Pedro disse em Cesaréia de Filipe: ``Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!" (Mt 16,16). Estava indiretamente afirmando: Tu és o Filho de Deus que se fez Homem. Pedro não teve medo de dizê-lo, embora tais palavras não proviessem dele. Provinham do Pai. ``Somente o Pai conhece o Filho, e somente o Filho conhece o Pai" (cf. Mt 11,27).
(...)
Pedro, como homem, mostrou que não era capaz de seguir a Cristo a toda parte, e especialmente até a morte. Depois da Ressurreição, porém, foi o primeiro a correr, com João, para o sepulcro, para constatar que o corpo de Cristo não estava mais lá.
Também depois da Ressurreição, Cristo confirmou a Pedro. Disse-lhe de modo muito eloquente: ``Apascenta meus cordeiros... Apascenta minha ovelhas!" (Jo 21,15-16). Mas antes Cristo lhe perguntou se O amava. Pedro, que tinha negado a Cristo, mas nunca deixara de amá-lo, pôde responder: ``Tu sabes que Te amo!" (Jo 21,15). Mas não repetiu mais: ``Ainda que tenha de morrer contigo, não te negarei" (Mt 26,35). Não era mais uma questão só de Pedro e de suas simples forças humanas; tornara-se agora uma questão do Espírito Santo, prometido por Cristo a quem deveria fazer-lhe as vezes na Terra.
Com efeito, no dia de Pentecostes, Pedro foi o primeiro a falar aos israelitas reunidos e aos que tinham vindo de todos os cantos da Terra, recordando a culpa daqueles que tinham crucificado o Cristo e confirmando a verdade de Sua Ressurreição. Exortou também à conversão e ao batismo. E, portanto, graças à obra do Espírito Santo, Cristo pôde confiar em Pedro, apoiar-se nele –nele e em todos os outros apóstolos–, como também em Paulo, que era ainda um perseguidor dos cristãos e odiava o nome de Jesus.
Tendo isto como pano de fundo, um pano de fundo histórico, pouco importam expressões como Sumo Pontífice, Vossa Santidade, Santo Padre. Importa o que provém da morte e da ressurreição de Cristo. É importante o que provém do poder do Espírito Santo.
Esta igreja confessa: ``Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo." Assim confessa a igreja através dos séculos, juntamente com todos aqueles aos quais o Pai revelou o Filho no Espírito Santo, assim como a eles o Filho no Espírito Santo revelou o Pai" (cf. Mt 11, 25-27).
Esta revelação é definitiva: só se pode aceitá-la ou rejeitá-la. Pode-se aceitá-la, confessando Deus, Pai Onipotente, Criador do céu e da terra, e Jesus Cristo, o Filho, da mesma substância do Pai, e o Espírito Santo que é Senhor e dá a vida. Ou então pode-se rejeitar tudo isso, escrever com letras maiúsculas: ``Deus não tem um Filho", ``Jesus Cristo não é o Filho de Deus, é apenas um dos profetas, embora não o último, é somente um homem".
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Na igreja –construída em cima da rocha que é Cristo–, Pedro, os Apóstolos e os seus sucessores são testemunhas de Deus crucificado e ressuscitado em Cristo. Deste modo, são testemunhas da vida que é mais forte que a morte. São testemunhas de Deus que dá a vida, porque é Amor (cf. 1Jo 4,8).
(...)
Antes de subir ao céu, Jesus disse aos Apóstolos: ``Eis que estou convosco todos os dias até o fim do mundo" (Mt 28,20). Ele, embora invisível, está portanto pessoalmente presente em Sua igreja. E também está presente em cada cristão, em virtude do batismo e dos outros sacramentos. Por isso, já no tempo dos padres era costume afirmar: ``Christianus alter Christus" (O cristão é um segundo Cristo), querendo assim sublinhar a dignidade do batizado e a sua vocação, em Cristo, à santidade.
(...)
Pensando bem, o significado de ``christianus" é muito mais rico que o de ``episcopus", mesmo que seja o bispo de Roma.
Pergunta – Gostaria de lhe pedir que falasse mais um pouco sobre o budismo. Com efeito, como bem sabe Sua Santidade, esta é uma ``doutrina de salvação", que parece fascinar um número sempre maior de ocidentais, não só como ``alternativa" ao cristianismo mas também como uma espécie de ``complemento", ao menos quanto a certas técnicas ascéticas e místicas.
Resposta – Sim, você está com a razão, e lhe sou grato por esta pergunta. Entre as religiões mencionadas na ``Nostra Aetate", deve-se prestar particular atenção ao budismo, que de certo ponto de vista é, como o cristianismo, uma religião de salvação. Deve-se porém logo acrescentar que as soteriologias do budismo e do cristianismo são, por assim dizer, contrárias.
(...)
A soteriologia do budismo constitui o ponto central, ou melhor, o único, deste sistema. Todavia, tanto a tradição budista como os métodos que daí derivam conhecem quase exclusivamente uma soteriologia negativa.
A experiência de ``iluminação" feita por Buda se reduz à convicção segundo a qual o mundo é mau, fonte de mal e de sofrimento para o homem. Para libertar-se desse mal, é necessário libertar-se do mundo; é preciso quebrar os grilhões que nos prendem à realidade externa; portanto, os laços existentes em nossa constituição humana, em nossa psique e em nosso corpo. Quanto mais nos libertamos desses grilhões, tanto mais nos tornamos indiferentes a tudo o que existe no mundo, e tanto mais nos liberamos do sofrimento, ou seja, do mal que vem do mundo.
Será possível aproximar-nos de Deus deste modo? Na ``iluminação" transmitida por Buda não se fala disso. O Budismo é, de certo modo, um sistema ``ateu". Não nos libertamos do mal através do bem que vem de Deus: dele só nos libertamos mediante a renúncia ao mundo, que é mau. A plenitude dessa renúncia não é a união com Deus, mas o assim chamado nirvana, ou seja, um estado de perfeita indiferença em relação ao mundo. (...)
Às vezes tenta-se estabelecer a este propósito uma relação de parentesco com os místicos cristãos: tanto com os do norte da Europa (Eckhart, Tauler, Suso, Ruysbroeck) como com os posteriores, da área espanhola (santa Teresa d'Ávila, são João da Cruz). Mas quando são João da Cruz, em sua ``Subida do Monte Carmelo" e na ``Noite Escura", fala da necessidade de purificação, de renúncia ao mundo sensorial, não concebe esse desapego como fim em si mesmo. ``Para chegares a saborear tudo, não queiras ter gosto em coisa alguma. Para chegares ao que não sabes, hás de ir por onde não sabes. Para vires ao que não possuis, hás de ir por onde não possuis" (``Subida do Monte Carmelo", 1, 13, 11). Estes textos clássicos de são João da Cruz às vezes, no Leste asiático, são interpretados como confirmação dos métodos ascéticos típicos do Oriente. Mas o doutor da igreja não propõe apenas a renúncia ao mundo. Propõe a renúncia ao mundo para se unir ao que está fora do mundo: e não se trata do nirvana, mas de um Deus pessoal. A união com Ele não se realiza apenas na via da purificação, mas mediante o amor.
A mística carmelita começa no ponto onde cessam as reflexões de Buda e suas indicações para a vida espiritual. Na purificação ativa e passiva da alma humana, nas chamadas noites dos sentidos e do espírito, são João da Cruz vê antes de tudo a preparação indispensável, para que a alma humana possa ser toda invadida pela chama viva do amor. E este é também o título de sua obra principal: ``Chama Viva de Amor".
(...)
A mística cristã de todos os séculos até nossos dias –e também a mística dos admiráveis homens de ação como Vicente de Paulo, João Bosco e Maximiliano Kolbe– construiu e constantemente constrói o cristianismo naquilo que ele tem de mais essencial. Constrói também a igreja como comunidade de fé, esperança e amor. Constrói a civilização: em particular, a ``civilização ocidental", que se caracteriza por uma positiva referência ao mundo e desenvolvida graças aos resultados da ciência e da técnica, dois ramos do saber radicados tanto na tradição filosófica da antiga Grécia como na revelação judeu-cristã. A verdade sobre Deus Criador do mundo e sobre Cristo, seu Redentor, é uma força poderosa que inspira uma atitude positiva em face da criação e um constante estímulo a empenhar-se na sua transformação e seu aperfeiçoamento.
Lemos na ``Gaudium et Spes": ``O mundo que (o Concílio Vaticano 2º) tem diante dos olhos é o dos homens, e toda a família humana com a totalidade das coisas entre as quais vive este mundo, teatro da história do gênero humano e marcado por sua atividade: derrotas e vitórias; este mundo criado e conservado pelo amor do Criador, segundo a fé dos cristãos; este mundo na verdade foi reduzido à servidão do pecado, mas o Cristo crucificado e ressuscitado quebrou o poder do maligno e o libertou, para se transformar de acordo com o plano de Deus e chegar à consumação.
Essas palavras nos mostram como entre as religiões do Extremo Oriente, em particular o budismo, e o cristianismo existe uma essencial diferença no modo de compreender o mundo. Este, com efeito, é para o cristão uma criatura de Deus, remida por Cristo. No mundo o homem encontra a Deus: não tem por isso necessidade de praticar tão absoluta renúncia para se encontrar no profundo do seu íntimo mistério. Para o cristianismo não tem sentido falar do mundo como um mal ``radical", pois no princípio de sua caminhada se encontra Deus Criador, que ama Sua criatura, um Deus ``que entregou o Seu Filho Unigênito para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3, 16).
Não é portanto fora de propósito chamar a atenção daqueles cristãos que com entusiasmo se abrem a certas propostas provenientes das tradições religiosas do Extremo Oriente, em matéria, por exemplo, de técnicas ou métodos de meditação e ascese. Em alguns lugares vieram a ser uma espécie de moda, aceita de modo bastante acrítico. É necessário, primeiro, conhecer bem o próprio patrimônio espiritual e refletir se é justo pô-lo de lado levianamente. (...)
Uma questão à parte é o renascimento das antigas idéias gnósticas na forma da assim chamada ``New Age". Seria uma ilusão acreditar que esse movimento possa levar a uma renovação das religiões. É apenas um novo modo de praticar a gnose, isto é, uma atitude do espírito que em nome de um profundo conhecimento de Deus, acaba por inverter a Sua Palavra, substituindo-a por palavras meramente humanas. A gnose sempre se manteve no terreno do cristianismo, sempre convivendo com ele, por vezes sob a forma de corrente filosófica, mas em geral com modalidades religiosas ou para-religiosas, em decidido ou mesmo declarado contraste com aquilo que é essencialmente cristão.
Pergunta – Bem diferente, com certeza, há de ser o discurso sobre as mesquitas onde (como nas sinagogas) se reúnem aqueles que adoram o Único, o Deus Único.
Resposta – Sim, fora de dúvida, deve-se falar de modo bem diferente dessas duas grandes religiões monoteístas, a começar pelo islamismo. Na já diversas vezes citada ``Nostra Aetate" lemos: ``Quanto aos muçulmanos, a igreja igualmente os vê com carinho, porque adoram a um único Deus, vivo e subsistente, misericordioso e onipotente, criador do céu e da terra" (nº 3). Graças ao monoteísmo, os crentes em Alá se acham particularmente próximos de nós.(...)
Quem, conhecendo bem o Antigo e o Novo Testamento, ler o Corão, vê claramente o processo de redução da Divina Revelação que nele se efetuou. É impossível não perceber como ele está longe daquilo que Deus disse de Si mesmo, primeiro no Antigo Testamento pela boca dos profetas, e depois de modo definitivo no Novo Testamento por meio do Seu Filho. Toda esta riqueza da auto-revelação de Deus, que constitui o patrimônio do Antigo e do Novo Testamento, foi de fato posta de lado no Islamismo.
Ao Deus do Corão se dão alguns dos nomes mais belos que se conhecem na língua humana, mas em última instância trata-se de um Deus fora do mundo, um Deus que é apenas Majestade, nunca Emanuel, Deus-conosco. O islamismo não é uma religião de redenção. Nele não há espaço para a cruz e para a ressurreição. Menciona-se Jesus, mas apenas como um profeta que prepara a vinda do último profeta, Maomé. Recorda-se também Maria, Sua Mãe virginal, mas se acha totalmente ausente o drama da redenção. Por isso, não apenas a teologia, mas também a antropologia do Islã se acha muito distante da cristã.
Todavia, a religiosidade dos muçulmanos merece o maior respeito. Não se pode não admirar, por exemplo, a sua fidelidade à oração. A imagem do crente em Alá que, sem ligar para tempo e lugar, cai de joelhos e mergulha na oração é um modelo para os confessores do verdadeiro Deus, em particular para aqueles cristãos que, desertando suas maravilhosas catedrais, rezam pouco ou não rezam absolutamente em tempo algum.
O Concílio convocou a Igreja ao diálogo também com os seguidores do ``Profeta", e a igreja continua trilhando esse caminho. Assim lemos na ``Nostra Aetate": ``Embora no decorrer dos séculos tenham surgido não poucas dissensões e inimizades entre cristãos e muçulmanos, o Sacrossanto Concílio exorta a todos a que, esquecidos os acontecimentos passados, sinceramente ponham em prática a mútua compreensão. Em benefício de todos os homens e em ação conjunta, defendam e ampliem a justiça social, os valores morais, bem como a paz e a liberdade".

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