São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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O turista ocidental

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Jorge Luis Borges, que traduziu ``Um Bárbaro na Ásia" para o espanhol, dizia que o livro de Henri Michaux, publicado originalmente em 1933, não é ``nem apologia nem ataque, mas os dois ao mesmo tempo, e muitas outras coisas mais".
``Um Bárbaro na Ásia" é resultado do que o próprio autor definiu como ``sua viagem", que de certa forma inaugura a obra, a noção de viagem como experiência, confronto do eu subjetivo com o ``outro", a viagem definitiva após tantas outras que tinha feito pela Turquia, África do Norte e América do Sul.
Até então, Michaux viajava ``contra", segundo suas próprias palavras. ``Para expulsar sua pátria, seus laços de todo tipo (...). Viagens de expatriamento". Seus deslocamentos pela América do Sul, que resultaram no diário de viagem ``Ecuador" (1929), estavam ligados a essa espécie de reação cultural, embora já servissem também para uma reflexão irônica de questionamento sobre as fronteiras entre realidade e ficção, real e imaginário etc.
``Até hoje, é como se eu não tivesse tido o sentido da mentira. Mas vou começar a mentir. Creio que é muito proveitoso ao espírito. Eles mentem todos a minha volta, muito naturalmente", escrevia em ``Ecuador".
Com ``Um Bárbaro na Ásia", as ambiguidades que depois marcariam toda a obra do escritor, confundindo objetividade e subjetividade, já começam a aparecer de uma forma mais desconcertante, de modo que nunca se sabe se o autor está falando bem ou mal do que o cerca, nem se o que o cerca é real ou imaginário.
Essa noção de viagem como experimentação de si, descoberta de si no confronto com outro, entrelaçamento entre o objetivo e o subjetivo, chega a sua maior radicalidade com a experiência com as drogas (a mescalina) e seus relatos, a partir de 1956.
Em ``Um Bárbaro na Ásia", o autor atravessa Índia, Nepal, China, Japão e Malásia como um antropólogo sem escrúpulos relativistas, emitindo opiniões e generalizações a partir da observação de estrangeiro que tem do outro.
Michaux oscila entre o respeito e a chacota do diferente; suas descrições são comparativistas, quase jornalísticas, absolutistas. Esse procedimento acarreta um sentimento hoje incômodo para o leitor e que já sugere, segundo estudiosos da obra de Michaux, uma das principais e mais originais qualidades do escritor.
Como diz Borges, não se sabe nunca se Michaux admira ou execra. Se por vezes isso lhe garante a espontaneidade –quando se indigna contra o sistema de castas indiano, por exemplo–, por outras faz com que pareça estar simplesmente possuído pela característica irritante, muito francesa (embora o autor seja de origem belga), de emitir juízos de valor impressionistas, como se fossem verdades absolutas, desde que mete os pés pela primeira vez em terra estrangeira.
Michaux acredita, à época em que escreveu o livro, que o conhecimento imediato é o mais verdadeiro. ``O conhecimento não progride com o tempo. Vamos ignorando as diferenças. Acomodamo-nos a elas. Entendemo-nos. Mas já não situamos. Essa lei fatal faz com que os antigos residentes na Ásia e as pessoas mais integradas aos asiáticos não sejam os mais aptos a preservar uma visão centrada, e faz com que um passante de olhos ingênuos possa às vezes pôr o dedo no centro".
O que salva o escritor é a radicalidade desse posicionamento pelo humor e a ironia, apontando para o que em seguida seria visto como a maior originalidade da obra. Quando fala do outro, Michaux está falando de uma modificação de si mesmo; suas opiniões são etapas de um processo de experimentação onde o próprio autor se colocou como objeto.
Uma passagem serve como metáfora do próprio projeto do livro. ``Quando o cavalo vê o macaco pela primeira vez, observa-o. (...) Forma uma idéia circunstanciada e vê que ele, cavalo, é um outro ser. (...) Na Índia, nas estrebarias, há quase sempre um macaco. Aparentemente o macaco não presta nenhum serviço ao cavalo, nem o cavalo ao macaco. Entretanto, os cavalos que têm um tal companheiro trabalham melhor, são mais dispostos que os outros. Supõe-se que o macaco, com suas caretas, suas cambalhotas, seu ritmo diferente, distrai o cavalo. E já o macaco teria prazer em passar a noite tranquilamente. (Um macaco entre pares dorme sempre em estado de alerta). Um cavalo, então, pode sentir que vive muito mais com um macaco do que com uma dúzia de cavalos."
A falta de relativismo esconde, no fundo, o mais completo relativismo. A experiência pessoal é transformada em representação do geral; a subjetividade do autor define a realidade e os povos que o cercam como personagens de uma ficção, de países imaginários.
Em ``Um Bárbaro na Ásia", o entrelaçamento entre viagem e obra, objetividade e subjetividade, pode ser comparado à idéia hindu de que é a descrição do mundo que lhe possibilita a existência. Se Michaux por vezes zombava como um bárbaro europeu das idéias indianas é porque ainda não tinha consciência das analogias que poderiam ser feitas entre elas e sua própria obra no futuro.

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