São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Eleições de 94 viram uma página da história

PAUL SINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Embora na maioria dos Estados a eleição para governador ainda dependa de dois turnos, a eleição federal terminou com os resultados esperados: venceu Fernando Henrique, com Lula em segundo lugar e os demais candidatos com pouquíssimos votos: cresceram as bancadas do PSDB e do PT, como seria de se esperar, em detrimento dos partidos cujos candidatos quase não foram votados.
A exceção é o PMDB, que, apesar da derrota de Quércia, conseguiu eleger grande bancada de deputados federais. A exceção se explica pelo fato de grande parte do partido não ter se comprometido com Quércia e pelo fato de boa parte de eleitorado distribuir seus votos por candidatos de diferentes siglas e coligações. O PMDB parece hoje um partido acéfalo e é difícil imaginar que possa manter-se unido no futuro próximo.
A partir destes resultados, abrem-se novas perspectivas ao Brasil. Para analisá-las, convém recordar que o país continua dividido entre uma economia e sociedade moderna e internacionalizada, competitiva no mercado mundial e ostentando padrão elevado de vida, e uma economia e sociedade atrasada, dividida em bolsões de pobreza que se fazem notar desde as favelas e cortiços das grandes metrópoles até os povoados de diversas regiões rurais.
Acontece que os bolsões de pobreza são reservas de mão-de-obra e de votos para os capitalistas da sociedade moderna. Os bolsões emitem fluxos de migrantes que aumentam a oferta no mercado moderno de trabalho, contribuindo poderosamente para concentrar a renda em detrimento dos trabalhadores. Elegem, para os cargos executivos e legislativos, candidatos conservadores, que dão apoio aos ajustes recessivos, à liberalização do intercâmbio comercial e financeiro com o exterior, às privatizações e à pretendida desregulamentação do mercado de trabalho.
É uma espécie de pacto infernal entre o empresariado da economia moderna e as forças que mantêm marginalizadas parcelas significativas da população. Na última década e meia, muitas empresas deslocaram suas fábricas dos centros industriais consolidados, onde era maior o poder de pressão dos sindicatos, para áreas novas no interior, em busca do barateamento da força de trabalho. O que foi possível graças aos bolsões de pobreza.
O pacto foi ameaçado, pela primeira vez, quando Lula dirigiu suas Caravanas da Cidadania às áreas mais atrasadas, fincando nelas bandeiras de emancipação que se contrapõem frontalmente ao relacionamento clientelístico que tradicionalmente mantém com os poderes constituídos. Arrancar estas populações de seu atraso e do seu isolamento, vinculá-las ao Brasil moderno mediante sua integração à economia nacional e internacional traria em médio prazo a ruptura do pacto que sustenta a hegemonia da classe capitalista.
Esta era a meta estratégica da coligação que lançou a candidatura de Lula e sua derrota mostrou que o Brasil ainda não está maduro para uma mudança desta envergadura. Mas, o evidente crescimento do número de votos de Lula no primeiro turno, entre 89 e 94, e do número de parlamentares eleitos pela coligação que o apoiou, indica que a ruptura do pacto conservador pelo lado dos bolsões marginalizados torna-se cada vez mais provável no futuro.
Embora Fernando Henrique tenha sido eleito precisamente por forças que se apóiam no referido pacto, ele também foi apoiado por tendências que se opõem a ele. Parece claro que o compromisso fundamental do presidente eleito é com o Brasil moderno, cuja integração maior na economia mundial liderada pelo G-7 (o grupo formado pelas sete maiores economias do mundo) seria a prioridade estratégica, inclusive para consolidar a precaríssima estabilização conseguida até agora pelo Plano Real. Deste ângulo, o câmbio de US$ 1,00 = R$ 0,85 indica o emprego de uma superdolarização para enfrentar as pressões por reajustamentos mediante verdadeira avalanche de produtos importados. A precipitada redução das tarifas alfandegárias, depois das eleições, reforça a impressão de que as necessidades conjunturais comandam a estratégia, impondo uma abertura precipitada do mercado interno às importações.
Acontece que a Terceira Revolução Industrial, que hoje domina o cenário mundial, tem se mostrado no Primeiro Mundo marginalizante e excluidora: diminui o volume de mão-de-obra empregada no segmento de tecnologia avançada, enquanto no resto da economia o emprego assalariado perde terreno para formas ``flexíveis" de contratação e subcontratação de trabalhadores, que deixam de ter as garantias que antes decorriam de um emprego regular. Onde há ainda seguro-desemprego, o número dos que o usufruem é enorme; onde não há, ou é precário (como entre nós), subemprego e desemprego se confundem e desaguam num caudal de nova pobreza.
Nestas condições, a maior integração do Brasil na economia mundial deveria ser cercada de cuidados para evitar que ela venha a agravar ainda mais a fratura socioeconômica do país. Seria necessário coordenar esforços ao longo das cadeias produtivas para aprimorá-las tecnicamente, reciclar o pessoal na linha de produção e em funções administrativas e negociar, entre governo, empresários e trabalhadores, programas de investimentos, de metas de produtividade e de redução de tarifas aduaneiras.
O verdadeiro desafio a ser enfrentado, não apenas pelo novo Presidente da República, mas pelo conjunto dos governantes eleitos em 3 de outubro, é como conciliar objetivos que em parte são conflitantes: 1º) canalizar recursos financeiros e não-financeiros aos setores marginalizados, o que requer reforma agrária, fomento de novas atividades, apoio às pequenas empresas e cooperativas de produção, implantação de programa de renda mínima garantida etc; 2º) garantir que a inflação não retorne às alturas, o que requer políticas de preços e salários que retirem o potencial inflacionário de demandas por reajustamentos, ou então abertura acelerada do mercado interno às importações e manutenção da taxa de juros em nível elevado para desencorajar o gasto com consumo e investimento; e 3º) retomar o desenvolvimento econômico através da redefinição do papel do país na divisão internacional do trabalho, procurando situar-nos o mais perto possível dos países que produzem bens e serviços de alta tecnologia.
O futuro do Brasil dependerá de modo como este desafio será enfrentado. Espero que, a despeito da composição das forças que o elegeram, Fernando Henrique opte por não abandonar, ou ``adiar", o primeiro objetivo e por não subordinar o último ao segundo. A estabilidade é importante, decisiva mesmo, pois a alternativa seria a volta à superinflação, que impede a consecução de qualquer outro objetivo.
Mas, a estabilização pode ser conquistada por diferentes estratégias. A do Plano Real é capenga, falta-lhe a perna da política de rendas. Se o futuro governo de Fernando Henrique persistir nela, entrará em choque direto com os trabalhadores organizados, num primeiro momento, e com os setores empresariais atingidos pela abertura acelerada do mercado em seguida. O que o obrigará a abandonar o objetivo de dirigir a integração do país no mercado mundial e, muito provavelmente, a adiar o de redimir as populações marginalizadas.
A lógica diria que a coalisão a ser formada por Fernando Henrique definirá o trade-off (a combinação) entre os três objetivos a ser perseguido. Mas a experiência histórica indica outra coisa: o presidente e sua equipe hierarquizam os objetivos e as várias correntes políticas alinhar-se-ão na situação ou na oposição, em função de suas opções ideológicas e/ou dos interesses que representam.
O processo político democrático se dá através de uma sucessão de ações e reações, na qual a eleição representa um momento crucial. Com a posse dos eleitos, o processo recomeça com novos atores, ou os mesmos em papéis diferentes, mas no ponto em que o elenco anterior o deixou. Em 1994, a eleição reafirmou o rumo dado ao processo pelo governo em fim de mandato, mas deixa entrever no horizonte forças que apontam para um novo rumo.

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