São Paulo, quinta-feira, 3 de novembro de 1994
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Béla Tarr mostra seu painel da vida húngara

CARLOS REICHENBACH
ESPECIAL PARA A FOLHA

O público brasileiro finalmente pôde conhecer alguns trabalhos do cineasta húngaro Béla Tarr, 39, nesta 18ª Mostra Internacional de Cinema. Seu sétimo trabalho, "Satantango", um monumental painel sobre a vida rural na Hungria, foi exibido no último fim-de-semana.
Para quem não teve fôlego para enfrentar suas sete horas e meia de duração, a última oportunidade para conhecer outro trabalho de Tarr é hoje. A mostra exibe "Danação", realizado em 1988, às 20h, na Sala Cinemateca.
Convidado habitual das edições anuais do Festival de Rotterdam, esta é a primeira vez que Tarr vem ao Brasil. O diretor húngaro falou à Folha, ao lado de sua mulher e montadora de seus filmes, Agnes Hranitzky, durante o intervalo da exibição de "Satantango".
Folha - Qual foi sua trajetória pessoal antes de começar a fazer cinema?
Béla Tarr - Sempre gostei de filmes, mas nunca pensei em ser um profissional de cinema. Desde os 16 anos eu fazia filmes pequenos em 8 mm, filmes amadores, particularmente sobre problemas sociais. Mas na verdade eu queria ser filósofo. Depois que saí do ginásio, pensei que devia aprender a vida primeiro e fui trabalhar em uma fábrica de navios. Mas o trabalho era muito difícil e fisicamente eu não suportei. Depois fui ser porteiro de uma casa noturna.
Folha - É dessa experiência na fábrica de navios que provém sua atração pela água, que aparece como elemento frequente em seus filmes?
Tarr - Talvez. Mas minha atração é mesmo por ela ser um elemento da natureza.
Folha - E seu interesse pela filosofia. Você o satisfez de alguma maneira através do cinema?
Tarr - A base de meus filmes é o povo, a vida do povo. Minha atração pela filosofia só permanece à medida em que ela possa ter uma relação estreita com a vida. Hoje me interesso muito mais pela vida real do que pela filosofia.
Folha - Seus filmes se orientam para atrair eminentemente a sensibilidade do espectador. Os elementos fundamentais parecem ser a atmosfera e o tempo, que são completamente originais. O senhor poderia falar um pouco sobre isso?
Tarr - Eu sempre estou em busca do sentimento. Quando crio uma atmosfera eu a experimento antes através do sentimento. Só então sei que é assim e que deve ser assim. Parto de uma idéia daquilo que quero ver. Sei muito bem quais vão ser os atores e o que posso esperar deles. Mas só através do sentimento posso perceber quando está faltando alma àquilo. Então invisto mais trabalho para estabelecer uma alma.
Folha - Tanto em "The Last Boat", episódio de "City Life", quanto em "Satatango" você adaptou textos do escritor húngaro Lászlo Krasznahorkai. Como foram feitos estes trabalho?
Tarr - Lászlo escreve livros. Ele não é um roteirista de cinema. Nunca trabalhou nesse ramo, ele só escreve livros. Ele não gosta de filmes. Ele tem um conceito muito depreciativo do cinema. Mas eu gosto muito dele, somos muito amigos.
O trabalho juntos só é possível porque eu o obrigo a se sentar comigo e a discutir o que pretendo. A linguagem que ele utiliza é muito especial, muito literária. Por isso é imposssível simplesmente adaptar seus escritos.
Só podemos trabalhar juntos porque eu tenho a linguagem do cinema e ele tem a linguagem dos livros. Eu falo como uma coisa vai funcionar na imagem e ele me dá sua opinião a respeito, se está coerente com o que quis dizer. Então escrevemos juntos os diálogos.
Folha - Para tudo correr bem é preciso que haja muita sintonia.
Agnes - A maior sintonia que temos é nossa opinião a respeito da vida e da sobrevivência. É isso que nos reúne, não apenas o filme que preparamos.
Folha - Mas Lászlo Krasnahorkai afinal gosta de seus filmes?
Tarr - Às vezes ele me declara que gosta dos filmes, especialmente de "Satantango". Ele também gosta de "Danação", cuja idéia é dele.
Folha - Uma coisa que impressiona muito em seus filmes é o uso que você faz da música. Quase não há melodia, existe apenas a harmonia, que é usada obssessivamente.
Tarr - Para mim ela deve ter o mesmo peso que os cenários e os atores. Não gosto de usar a música para criar um efeito, eu a uso mais como um leit-motiv. Ela tem uma função dramatúrgica quando aparece ou desaparece.
Trabalho sempre com o mesmo compositor, Mihály Vig, que é também o ator principal de "Satantango". Fizemos a música bem antes de fazer o filme e a usamos já durante as filmagens. A cena é feita respeitando o ritmo da música. O operador filma ouvindo a música. Antes de filmar eu já sei quais cenas vão ter música. Ela funciona como elemento de inspiração.
Folha - Com tudo tão preparado, até que ponto você está disposto a fazer uma mudança no momento das filmagens?
Tarr - Se for preciso, se a alma não estiver lá, mudo tudo.
Folha - Quanto a "Satantango", quanto tempo foi gasto na pré-produção?
Tarr - O livro que o inspirou apareceu em 1985. Logo que li os manuscritos liguei para Lászlo -que ainda não conhecia neste momento. Com muita dificuldade ele concordou.
A situação política da Hungria era ainda muito difícil e não me permitiram realizar o filme baseado no livro quando tentei. Inventamos outro argumento ("Danação") que acabou sendo feito. Lutamos muito para fazer "Satantango" e só conseguimos começá-lo depois de 1990. Gastamos 120 dias, para filmá-lo. Demoramos tanto porque precisávamos encontrar cenários e situações adequadas para filmar.
Folha - Como espectador de cinema, o que você gosta e espera de um filme?
Tarr -Espero que o filme crie uma linguagem original, que não seja apenas uma história filmada, que não seja anti-humano, e que tenha o objetivo de querer mudar o mundo. Acho que um filme deve tentar responder uma pergunta: o que vale uma vida humana?

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