São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Morte: um rascunho

Quando tudo o mais terminou, quando a selvageria e o silêncio tornam-se a verdade nua e crua, você não está sozinho

Eu queria fazer, como uma espécie de gracejo, um esforço sobre-humano semelhante ao que Ellen esperava de mim. Mas, como se sabe, com a idade a gente vai perdendo a capacidade de fazer esforços sobre-humanos, depois de fazer tanto pelos filhos, ou no trabalho, no esporte, no amor, ou por alguém que adoeceu. Um dia a capacidade se esgota.
Ellen estava fazendo um esforço sobre-humano, cuidando de mim, ajudando-me a chegar até o computador e levando-me de volta para a cama. Ela fazia as compras, cozinhava, cuidava da casa, resolvia todas as questões pendentes, enfrentava todas as situações de emergência que surgiam, atendia o telefone, mentia para as pessoas que faziam perguntas sobre minha doença, dava-me de comer, conversava comigo, revia os escritos que eu produzia. Ela pegava fitas na locadora de vídeo, deitava-se a meu lado e me fazia companhia, trazia-me sacos de gelo quando a febre subia muito e minha cabeça doía, verificava a hora de me dar cada remédio e de tomar minha temperatura, e –quando eu pedia– cantava para mim.
Elle ajudava-me a vestir-me e a tirar as roupas; não gostava que eu ficasse o dia todo de pijama. Sua onipotência estava no auge; havia a seu redor uma aura levemente luminosa e um tanto distanciada, que circundava minha sensação de ser vítima de uma maldição, de estar me dissolvendo. Esta onipotência era parenta próxima daquela força de vontade neurótica que é característica das mulheres capazes e sobre a qual escrevem-se tantas páginas mal-humoradas; creio que havia mesmo algo de louco naquela atividade incansável, aquela ternura aparentemente inesgotável. Claramente forçada –mas talvez não o fosse–, era muito mais forte e perseverante do que qualquer tentativa de sedução que já me fora dirigida.
Não chamávamos ninguém. Continuávamos dizendo aos parentes e outras pessoas que ligavam que eu estava com pneumonia, só isso. Num isolamento um tanto transparente, minha mortalidade arrogante e a ternura ardente de Ellen dançavam juntos em nosso apartamento em Nova York. Era como brincar de casinha na infância.
Então ela perguntou: "O que vamos dizer aos seus filhos?" A perspectiva de ter que falar com eles não lhe parecia agradável –não é apenas constrangimento: é um sofrimento por antecipação, medo de que eles reajam mal de início; e, por outro lado, os pais têm vergonha de impor uma coisa tão deprimente aos filhos quando eles reagem de modo generoso e receptivo. Você acaba tendo de consolá-los.
"Depois. Daqui a uns dias a gente começa. Eu ainda não estou com cabeça para isso."
"Tudo bem."
Ellen estava cuidadosa; não queria que eu me sentisse culpado. Eu me sentia completamente repelente. Já havia renegado meu próprio corpo; agora tudo se resumia a dores e cheiros, dificuldade de falar, olhares mórbidos. Nessas situações de recolhimento doméstico e emocional, as verdades costumam não ser registradas. As coisas do mundo exterior penetram nosso santuário; a televisão é uma janela; o telefone é um buraco de fechadura cheio de vozes. No meio de toda esta fantasmagoria, houve um momento em que Ellen resolveu me despertar.
Um beijo –como me pareceram estranhos os lábios de Ellen, a vida que neles encontrei. É claro, pensei, é claro. As sensações que ela me passava: o calor da pele, o calor dos olhos tão perto de mim, tudo nela estava ainda vivo, cheio das falas silenciosas que a vida produz. Ela estava quente, cheia de movimentos reativos. Meus lábios, meus sentimentos estavam mortos, como os de uma criança emburrada.
Aceitei Ellen e seus sentimentos como verdades, como o máximo de verdade que eu poderia desejar. Isto significava que, na minha segunda semana depois de voltar para casa, nós dois demos conta de que, neste mundo limitado em que um observava o outro, em que os dois abriam mão do egoísmo por algum tempo, este período era para nós, numa paródia horrenda, uma espécie de lua-de-mel, e que nós dois aceitávamos este fato, ainda que no final tudo desse em dor e morte.
Fora a dor, nada de horrível aconteceu. Como ela não se importava –ou melhor, não manifestava repulsa por minha palidez doentia– fui ficando mais afetuoso: o cadáver abraçou-a. Ela percebeu o gesto, e observou que meu coração batia forte. "É, eu sempre me orgulhei muito das batidas do meu coração." Ela beijou-me nos lábios com sinais generosos de interesse e bom humor. E me disse: "Ninguém vai acreditar em mim se eu disser que estou vivendo uma das épocas mais felizes da minha vida".
Caí na gargalhada, tanto que meu pulmão endurecido doeu e sufoquei-me. E voltei à vida mais uma vez, por algum tempo. E por que não? Quando tudo o mais terminou, quando a selvageria e o silêncio tornam-se a verdade nua e crua, você não está sozinho. Você continua passando por um ser humano entre outros seres humanos. Há coisas que precisam ser feitas, coisas de família, coisas literárias, coisas que têm a ver com a Aids. Faço o que tem de ser feito com sinais de interesse e bom humor no rosto.

Também a agonia tem um certo ritmo. Ora diminui, ora acelera. Muito poucas coisas têm importância, mas estas poucas coisas são muito importantes para mim. Sinto o silêncio à minha frente tal como senti, durante toda a minha vida, o silêncio de Deus, como uma coisa dada e fonte de um terror razoável. Trata-se de algo que é necessário suportar, independentemente das afirmações da religião –não a idéia de que se vai morrer, mas a realidade de nossa própria morte. A gente se treina a aceitar o terror. É esta a forma assumida pela vida perto do fim. É uma forma de vida.
Tradução de PAULO HENRIQUES BRITTO
Copyright Harold Brodkey

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