São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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O acaso levou Gustavo a assassinar a família

O ato deste rapaz de 21 anos foi puramente humano

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gustavo tem 21 anos. Gratuitamente, matou os pais, a irmã e os avós. O crime provocou perplexidade. No centro do espanto, a ausência de motivos. Nada parece justificar o episódio. É isto um feito. Alguma coisa que, boa ou má, rompe com o passado, anula previsões e desmente antigas crenças. Porque somos imprevisíveis agimos, e, porque agimos, tudo o que se segue à ação pode ganhar um sentido inusitado ou não ter sentido algum.
O acontecimento que envolveu Gustavo e sua família choca porque parece injustificável. Pensamos, com razão, que toda conduta intencional humana é "intencional" e "humana" justamente porque pode ser descrita como tendo causas e motivos que permitem entender seus propósitos. Quando alguém age e não sabe dizer porque agiu, a surpresa é inevitável.
Nosso mundo é ordenado de modo que sejamos capazes de dizer quais crenças e desejos nos movem em direção a certos fins. Sem esta capacidade mínima de discriminar o que queremos ou não, o que julgamos bom ou não, não existe cultura. Mesmo quando acreditamos que o bem e o mal não dependem de nós porque estão "fora de nós", em algum espírito, força ou entidade, aprendemos a agir eticamente, justificando condutas conforme objetivos morais. O que chamamos de cultura nada mais é do que o conjunto de instituições reguladas por crenças que dizem, "nem tudo pode ser feito, dito ou pensado." Matar quem se ama, sem motivo aparente, é uma ação que desmantela nossa capacidade de julgar.
Donde os esforços para entender o que se passou. As hipóteses, teorias e especulações multiplicam-se. Como uma metáfora, o gesto homicida pede, exige interpretação. No século passado, atos da mesma ordem tiveram diversos nomes: parrícidio, loucura moral, perversão instintiva, degeneração etc. Antes, na história do Ocidente, foram chamados de "possessão", "feitiçaria" ou "heresia".
Se recuarmos ainda mais no tempo, o nome dado a este tipo de acontecimento seria "excesso", "desmedida", desafio à fortuna ou ao destino. Hoje as explicações são outras: epilepsia; ódio recalcado; ambivalência afetiva; desequilíbrio neuro-enzimático; dissociação da consciência; fragmentação do Eu; falência do simbólico; emergência do real; anomia social; passagem ao ato pulsional; violência latente na cultura etc.
Tudo isto é ou pode ser verdadeiro, porquanto moralmente justo. Diagnósticos e prognósticos visam pacificar a consciência do homem comum, ajudar Gustavo a dar sentido ao que ocorreu e protegê-lo de uma lei que, eventualmente, pode deixar-se enganar pelas aparências. Mas se qualquer uma das explicações pode ter sido, de fato, causa do que aconteceu, nenhuma ou quase nenhuma é razão necessária e suficiente. Fazendo o que fez, Gustavo nem foi longe o bastante para ser visto como "louco inofensivo" nem ficou perto o suficiente para dissipar temores e inquietações. Entre ele e nós, criou-se um fosso. Melhor dito, um fio de navalha que, cortando o ato de seu entendimento e o autor das intenções e consequências das ações, apartou-os do mundo da sensatez sem torná-los signos de loucura.
É este o enigma mil vezes conhecido, mas que ressurge sempre como se fosse a primeira vez. Numa fração de segundo, uma pequena excitação neural quase incomensurável; uma dor de cabeça banal; uma história familiar simples; uma arma de fogo à disposição, um aperto de gatilho... e eis a forma do horror. O acaso, somente o acaso, levou Gustavo a assassinar a família e a tornar-se responsável por um passado que não escolheu. Assim começa e termina a futilidade de nossas vidas. Somos uma teia de acasos e contingências, incontrolável no princípio e no fim, e no entanto temos de prestar contas pelo que não sabemos de onde veio e para onde vai.
Daqui por diante, tudo muda. Gustavo será obrigado a falar sobre o que preferiria calar; a evocar o que preferiria esquecer e a perguntar o que ninguém sabe responder: "por que comigo?" Seu presente é um salão de espelhos onde tudo se inverte ou se distorce. Amigos, namoros, chopinhos, cinemas, estudos, trabalho, em suma, todo o passado será outra coisa. Será um condensado de lembranças perdidas entre celas de prisão, quartos de hospitais, anamneses médicas, interrogatórios judiciais, choros, desesperos, cansaços, desistências e resignações.
Seus novos "irmãos" serão os insensatos –Althusser, Pierre Rivière, Bertrand etc–; sua nova "família", a das patologias da vontade, da razão ou do sistema neurológico. Como uma gota d'água em pedregulho seco, sua história vai sumir e ele renascerá na solidão da mais atroz das diferenças, a que não tem palavras para dizê-la.
Poucos, entretanto, imaginam o que é ser diferente, radicalmente diferente. Ser diferente, radicalmente diferente, é viver uma vida sem saber a que ela se destina. É desejar loucamente que cada dia termine, embora sabendo que amanhã tudo vai ser igual. Ser diferente é aprender que o maior bem da vida é encontrar no outro um semelhante e, de repente, dar-se conta de que ninguém se assemelha a ti. Ser diferente é ver a felicidade a meia distância, sabendo que ela é impossível, mas não podendo deixar de desejá-la. É, finalmente, despedir-se eternamente do que se quer, sem poder decidir se é melhor ir ou ficar, já que lá como aqui a ilusão dura pouco, justo o tempo do recomeço, logo, desfeito em fim. Esta solidão não tem tamanho.
Não há, dizia Artaud, como medir "este nó de agonia central" num "eu edemaciado" pela presença absoluta da dor moral. Não se pode viver isto aos 21 anos; não se deve viver isto aos 21 anos; não é justo fazer alguém sentir isto aos 21 anos.
Gustavo, talvez teu desamparo não encontre alento nos remédios dos homens de ciência ou nas recomendações dos homens de lei. O que fizeste foi enorme, mas se ainda não sabes é preciso que alguém te diga, és humano puramente humano. Escuta, Gustavo, és um de nós, e pouco importa tua falta, não mereces o abandono inconcebível dos exilados da condição humana. Isto é crueldade. Alguns entenderam isso. Dostoievski entendeu isso, quando fez Mychkine, seu "príncipe idiota", beijar na face o assassino da mulher que amava. Adriano, teu irmão, entendeu isso, quando se aproximou de ti como se dissesse: "Vem cá, Gustavo! Olha para mim, me dá um abraço, és meu irmão!" Vê neles o melhor de nossa humanidade, de nossa solidariedade. Quanto aos demais, perdoa-os. O medo é uma loucura breve. Nem todos sabem o que fazem.

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