São Paulo, quarta-feira, 23 de novembro de 1994
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GERALDO ATALIBA

Para salvar o Brasil, alguns economistas –secundados por políticos imponderados– propõem que se eliminem os "obstáculos legais" aos seus geniais planos. Alegam que há gargalos no sistema legal e compromissos inflexíveis de despesas, que impedem uma ação pronta, enérgica e eficaz, capaz de resolver todos os nossos problemas.
Ora, diante do quadro que tínhamos em 1964, adotou-se exatamente essa fórmula. Eliminaram-se todos os obstáculos constitucionais e legais e entregou-se a condução do país a economistas cujo talento ninguém contesta: Bulhões, Roberto Campos, depois Delfim, Simonsen e outros.
A Constituição era modificada (atos institucionais) ao talante das conveniências (sempre definitivamente salvadoras) dos economistas e dos interesses ("nacionais") que eles promoviam. As leis eram alteradas e suprimidas com invejável rapidez e admirável facilidade (atos complementares, decretos-leis).
Durante quase 25 anos, os governos não conheceram "obstáculos" legais à sua ação salvadora. E os economistas não tiveram nenhuma dificuldade de tipo normativo, para nenhuma de suas idéias, fórmulas ou invenções. Desde essa época, o país esqueceu-se de que não há questões nem decisões puramente econômicas.
Estamos pagando caro por ter ignorado que há, sim, sempre e inevitavelmente, questões e decisões políticas (os professores Simonsen e Delfim têm, hoje em dia, reiterado pronunciamentos nesse sentido). Durante o regime autoritário, fingiu-se que não havia mais "economia política" (designação tradicional e universal desses estudos), mas só economia.
E o resultado foi o que temos hoje: favelas, mendigos em todas as esquinas, criminalidade desabusada, desemprego alarmante, sucateamento da educação e da saúde públicas.
Tudo consequência da escandalosa concentração de renda, paralisação do "processo agrário" (nesse nefasto período, empurrou-se para as cidades, sem prepará-las para tanto, 30 milhões de pessoas do campo), destruição dos aparelhamentos policiais e penitenciários e desincentivo à geração de empregos e investimentos produtivos.
A qualquer pessoa que contemple esse período, suas características e efeitos, logo acorrerá a conclusão de que, até 1964, o Brasil tinha rumos e uma linha razoável de ação, com satisfatórios resultados. Sempre se soube que algumas correções se impunham.
O golpe de 1964 subverteu nossas instituições. Seu grande erro, causador de todos os nossos males (pelos quais estamos pagando tão caro, até agora), consistiu exatamente em ter-se a) liberado os governos de freios jurídicos (com a dissolução da idéia de Constituição) e b) ter-se dado a economistas (por inteligentes que tenham sido) o poder de decidir livremente, fazer e desfazer, sem peias, nem pautas básicas fixadas pela sociedade, à luz de valores que ela estima prezáveis e, pois, dignos de erigirem-se em princípios constitucionais e legais, tais como: igualdade, legalidade, segurança jurídica, federação, superação de nossas gritantes desigualdades, previdência, ensino e saúde básica públicos etc.
Sobretudo comprometeu a segurança jurídica, a normalidade institucional. Instaurou o arbítrio e a instabilidade legislativa, criando incerteza constante e imprevisibilidade quanto ao futuro.
O nosso passado e o de outros povos ensina que só haverá investimento produtivo, criador de riqueza e gerador de empregos, num clima de segurança jurídica, primado da lei e tranquila previsão das decisões políticas, com total exclusão do arbítrio.
Se tivermos segurança jurídica, "tudo mais nos será dado por acréscimo".
Custo a crer que um governo, liderado por sociólogo do porte de Fernando Henrique –depois de tanto sofrimento com a insegurança jurídica gerada pelas concepções predominantemente economicistas– esqueça-se das lições da política (ciência que estuda o governo da Pólis) e enverede por caminhos já conhecidos e provados desastrosos.
Quem não aprende com a história está condenado a vê-la repetida. Vamos retornar ao passado?

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