São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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A armadilha da atual política econômica

LUCIANO COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A atual política econômica encalacrou-se numa armadilha. Preocupado com o repique inflacionário de outubro/novembro, o Banco Central decretou um forte arrocho do crédito e elevou as taxas de juros, com o fito de desaquecer a economia.
Mas os juros elevadíssimos (especialmente se calculados em dólares) atraem capitais externos em escala crescente e tendem a valorizar o real.
Para neutralizar essa tendência, que até há pouco empurrava o dólar para baixo, o BC buscou –deliberadamente– provocar um déficit no movimento do câmbio comercial.
Para isso, foram dificultadas as operações de adiantamento de câmbio (ACC) e, já na última semana de outubro, verificou-se uma expressiva queda no fechamento do câmbio exportação.
Mais recentemente, medidas facilitatórias foram adotadas em relação às importações (inclusive via Correios, com reduzida tributação, instaurando-se uma abusiva concorrência desleal com a produção no país!).
O resultado foi uma incisiva reversão do movimento do câmbio comercial, que exibia superávit mensal de cerca de US$ 1 bilhão desde julho e passou subitamente para um déficit de US$ 500 milhões em novembro.
O objetivo do governo é o de acelerar a redução do saldo da balança comercial e, o quanto antes, produzir um déficit –instrumental para conter as pressões inflacionárias em certos setores e funcional para a condução da política monetária.
Infelizmente, câmbio supervalorizado, juros elevadíssimos, arrocho creditício e saldos comerciais cadentes em direção a um déficit constituem uma configuração contraproducente para a economia, deletéria para as finanças públicas e nociva para a competitividade da indústria.
Essa configuração, porém, tornou-se o pilar de sustentação do Plano Real.

Juros altos
As bases fiscais do real continuam precárias. Projeta-se para 1995 um desequilíbrio de R$ 10 bilhões no Orçamento Geral da União, que pode ser agravado pela isonomia e pelos reajustes do funcionalismo, além da extinção do IPMF.
Imagina-se que este déficit será coberto por receitas (ainda incertas) do programa de privatização.
Importa, porém, sublinhar o impacto arrasador dos juros elevados sobre a dívida pública federal e, especialmente, sobre as dívidas estaduais, cuja rolagem já é penosa e precária.
O efeito desejado de contenção do consumo de duráveis, das classes médias, poderia ter sido obtido com medidas seletivas e melhor enfocadas.

Câmbio valorizado
Se duradoura, a supervalorização cambial (que já alcança 14%, na hipótese mais otimista, usando-se o IPA como critério) provocará sequelas.
Os setores competitivos que exportam commodities agroindustriais e minero-metalúrgicos (café, suco de laranja, soja e derivados, papel e celulose, minério de ferro e produtos siderúrgicos, alumínio e petroquímicos) poderiam conviver com ela graças à recuperação das cotações internacionais, no bojo da recuperação da economia mundial –mas com certo sacrifício de suas margens de lucro e capacidade de investir.
Uma grande parte da indústria, especialmente de bens não-duráveis de consumo, cujo processo de reorganização ainda se encontra em andamento, poderá vir a sofrer graves prejuízos com a maciça penetração de importações (têxteis, vestuário, calçados, alimentos industrializados, artigos de higiene e limpeza etc.).
O setor de bens duráveis de consumo certamente amargaria duros tempos (automobilística, autopeças, linha branca, audio-vídeo, eletrodomésticos de menor porte etc.).
Fortemente fragilizados ficariam, também, o setor de bens de capital e todo o complexo eletrônico. Os insumos básicos e os materiais de construção, em geral não fortemente transacionáveis no comércio internacional, poderiam sobreviver com danos mais leves.
Alguns argumentam que a indústria brasileira fez significativos ganhos de produtividade desde 1991 e, portanto, está preparada para absorver a valorização cambial.
É verdade, ocorreram ganhos importantes da produtividade aparente (o valor da produção/hora trabalhada média da indústria paulista cresceu cerca de 26% no período 1991-1994), mas é preciso lembrar que a proteção tarifária média também foi substancialmente reduzida de 33% para menos de 14% e que continuará sendo diminuída no quadro do Mercosul.
A curto prazo, os efeitos da sobrevalorização cambial podem ser atenuados por compensações fiscais-tributárias.
Mas, a médio prazo, a indústria de transformação passaria a operar com níveis muito mais elevados de importação de insumos, partes e componentes.
Muitas atividades e novos projetos industriais tornar-se-iam inviáveis. O desemprego urbano tenderia a crescer. O desempenho industrial ocorreria de forma truncada e restrita às vantagens competitivas absolutas.

Novo caminho
Duplamente consagrado nas urnas pelos resultados favoráveis do segundo turno, o presidente-eleito Fernando Henrique Cardoso conta com excepcionais condições de governabilidade.
FHC pode constituir uma confortável maioria parlamentar e possui raio-de-manobra para realizar reformas nos planos fiscal, tributário e previdenciário.
Eleito pela promessa de sustentar o Plano Real, pesa sobre o presidente o compromisso de manter a inflação baixa.
Aprofundar um déficit comercial, com câmbio crescentemente valorizado, é uma opção cômoda a curto prazo, mas distorcida e onerosa para a economia a médio prazo e certamente vulnerável para o país na medida em que passe a depender do ingresso de capitais financeiros, em grande escala, para fechar suas contas externas.
Não há, porém, uma fatalidade. Com os recursos políticos e o apoio de que dispõe, o futuro governo pode optar por uma rota alternativa, que articule estabilização, política de rendas e um projeto de desenvolvimento –invertendo a atual configuração negativa da política econômica em direção a juros reduzidos e à correção da crescente defasagem cambial.

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