São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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Uma sociedade ameaçada

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

O conservadorismo populista é quem ameaça a democracia nos Estados Unidos
A vitória esmagadora do Partido Republicano nas eleições norte-americanas pode ter muitas interpretações, todas válidas: uma derrota pessoal do presidente Bill Clinton, uma guinada para a direita, um não à intervenção do Estado na área social. Prefiro, entretanto, salientar um aspecto que mereceu menos atenção, mas que talvez seja o mais importante.
Nestas eleições a sociedade civil americana, anglo-saxã e de classe média, manifestou seu medo, sua insegurança diante de um mundo em profunda transformação. A vitória conservadora é sintoma de uma sociedade ameaçada.
Ameaçada pelos pobres internos, que são fonte de aumento de criminalidade e de gasto social; pelos pobres do Terceiro Mundo que imigram para os EUA; pelos baixos salários do mesmo Terceiro Mundo que viabilizam a exportação de manufaturados para os EUA e levam ao desemprego interno; pelo "big government" que aumenta impostos e tenta implantar um sistema de seguro social universal financiado pela classe média; ameaçada pela alegada maior eficiência da indústria japonesa.
Sintoma limite dessa sensação de ameaça é a formação de milícias paramilitares no país para se defenderem contra o governo, que tenta limitar o porte de armas. O jornal "New York Times" publicou recentemente (14/11) uma impressionante reportagem sobre este fenômeno de delírio coletivo, que, embora limitado, é significativo.
Os vencedores, nestas eleições, foram não apenas os conservadores moderados, como o senador Bob Dole, mas os nacionalistas populistas, como o deputado Newt Gingrich, que deverá ser o presidente da Câmara dos Deputados.
E a mensagem neoliberal radical que levaram a seus eleitores foi clara. O Estado precisa ser fortemente diminuído; os impostos, reduzidos; os benefícios sociais, cortados; os imigrantes, contidos; os acordos de livre-comércio, paralisados; a indústria, protegida contra o "dumping social" do Terceiro Mundo.
Bill Clinton é um "new democrat", eleito sob a bandeira de uma economia mais voltada para o mercado, de um Estado menor embora ativo na área social e da política industrial, do ajuste fiscal como prioridade número um, da responsabilidade pessoal sobrepondo-se embora não eliminando a responsabilidade coletiva. Ou seja, sob a bandeira da reforma do "welfare state", que inchara e levara o país a uma crise fiscal.
Os "novos democratas" e Bill Clinton perceberam, ainda nos anos 70, que chegara a hora de reformar o Estado, que o modelo de Estado que Roosevelt e o "New Deal" introduziram havia sido distorcido.
Os "velhos democratas", que na América Latina correspondem aos nacional-desenvolvimentistas, entenderam esta mudança como sendo uma guinada para a direita –quando era simplesmente uma reformulação oportuna e necessária da visão das forças progressistas e modernas nos Estados Unidos.
Quando Clinton chegou ao governo, cercado por novos e velhos democratas, acabou sendo incorretamente identificado pelos eleitores com os últimos.
Por outro lado, a partir do momento em que assumiu, Clinton foi literalmente "cercado" pelo conservadorismo americano, que usou de todas as suas armas para neutralizá-lo. Sentindo o cerco, nos primeiros meses de governo, fez uma retirada estratégica, para, no segundo semestre de 1993 fazer um bem-sucedido contra-ataque, e afinal vencer no Congresso duas batalhas: a do plano econômico e a do Nafta.
Logo em seguida, o cerco foi retomado, agora apoiado em acusações morais pouco relevantes contra o presidente, e na crítica a seu plano de previdência social universal, que seria muito burocratizado. Desta vez, Clinton não foi capaz de repetir a estratégia –retirada e contra-ataque–, ficando enredado em uma política que acabou sendo identificada como confusa e hesitante.
Na verdade, a política de Clinton era muitas vezes corajosa. No plano interno, por exemplo, o "New York Times" reconheceu que o governo estava realizando, nos primeiros 15 meses, a mais ampla política de combate à pobreza conduzida pelo Estado na história do país. Como o jornal, entretanto, assinalava, essa política era realizada em "low profile" –não era bem vista pela classe média, que temia pagar a conta.
No plano externo, a política em relação ao Haiti foi certamente um êxito. No plano fiscal, houve uma queda sensível do déficit, graças principalmente à redução dos gastos militares.
Não obstante, Clinton não logrou dar segurança à sociedade americana, que, ao invés, passou a se sentir cada vez mais ameaçada, não apenas pela competição externa e pelos pobres internos, mas também pelo Estado, que insistia em aumentar impostos e programas sociais. A partir desse fato, torna-se mais fácil compreender a vitória republicana.
O estranho, entretanto, é que essas ameaças são pouco fundamentadas. Na verdade, são mais uma reação irracional à perda da hegemonia econômica dos Estados Unidos em nível internacional, e à estagnação dos salários dos trabalhadores e da classe média nos últimos 20 anos, do que uma resposta objetiva aos problemas do país. Problemas que, no entanto, estão sendo bem resolvidos.
Sem dúvida, a economia dos EUA cresceu menos do que a da Europa e do Japão na segunda metade deste século, sem dúvida a concorrência dos novos países industrializados aumentou. Mas não há ameaça real por parte dos pobres nem do Terceiro Mundo, nem do Japão.
Nos últimos anos está havendo clara retomada da economia americana. A produtividade cresceu, a indústria automobilística dos "big three" retomou a iniciativa tecnológica, o domínio americano na área da informática continua a não ser desafiado, a economia americana voltou a crescer com força.
Os republicanos estão naturalmente eufóricos com a vitória e os democratas, confusos. É cedo, entretanto, para declarar Clinton definitivamente derrotado. Há muito os Estados Unidos não contavam com um presidente tão preparado e com uma visão tão clara da natureza da crise americana.
Por outro lado, terminada a eleição, começam as preocupações. O "New York Times" publicou dois editoriais advertindo contra o populismo de direita de Newt Gingrich. A revista "The Economist" adverte contra o cinismo popular e a desconfiança na política –apenas 38% dos eleitores votou.
Na verdade não é a sociedade americana que está ameaçada pelos pobres. Quem pode estar sob a ameaça do conservadorismo populista é a democracia. Esta é uma ameaça que a centro-esquerda e a centro-direita, que os progressistas e os conservadores moderados, terão de enfrentar juntos. Não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo.
Nos EUA, entretanto, essa aliança de centro é especialmente necessária porque este país, embora tenha perdido sua hegemonia econômica e enfrente graves problemas internos, continua a ser o bastião da democracia de todo o mundo.

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