São Paulo, sábado, 3 de dezembro de 1994
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Tarzã e as macacas

JOSUÉ MACHADO

Tarzã aprendeu a falar primeiro a linguagem dos gorilas porque foi criado por Kala, a macaca. Depois é que se alfabetizou em inglês, sozinho, gênio que era, estudando os livros encontrados na cabana em que seus pais morreram depois do naufrágio nas costas da África. O fato é que Johnny Weismuller, o maior Tarzã das telas, dizia para Jane: "Me, Tarzan, you, Jane, she, Shita." Ele tinha dificuldade com os verbos porque, sabemos todos, a linguagem materna gorilal não os utiliza. É só urgh, argh, guth, garr, gurr em diferentes entonações e com certos movimentos e trejeitos.
O que tem a ver o urubu com Cinderela?
Essas lembranças surgiram da visão de mais um criativo anúncio veiculado em cartazes pela cidade, talvez pelo mundo, em que o redator atropela de novo o modo verbal imperativo. Primeiro foi o anúncio do cigarro Dallas, ainda brilhando por aí: "Pega o seu" em vez de "Pega o teu" ou "Pegue o seu", como já comentamos. Agora, o Taffman E:
"Se você não gosta, continua no milk-shake."
Além da caca verbal, o artista ainda põe em dúvida o sabor do produto que pretende defender. Maravilha.
Se o Tarzã, antes de assumir sua posição de Lorde Greystoke, se metesse a usar verbos, faria coisas como essas, misturando o pronome na terceira pessoa com o verbo na segunda. Como era esperto, ficava na dele. Ou melhor, na dos gorilas, que era a língua que conhecia bem nos primeiros tempos. Outra lembrança: Edgard Rice Burroughs (1875-1950), criador do Tarzã, não diz, mas pessoas maliciosas desconfiam de que o herói da selva andou utilizando sua astúcia humana para seduzir uma ou outra ingênua macacona, fora a Shita, antes que Jane lhe ensinasse a coisa certa. Ele até era conhecido entre elas como "o pelado gostosão". Mas esses eram tempos recatados e não convém macular a pureza do personagem. Fiquemos no uso da língua, no bom sentido, tão maltratada agora.
Será que o redator maltratante do imperativo nicotínico é o mesmo do anúncio do Taffman E? Será primo? Admirador? Discípulo? Será a mesma agência a geradora de tão instrutivos cartazes, que por puro luxo papagaial chamam de "outdoors"? Por que não faz, ou não fazem, se for uma dupla dinâmica, como o bom Tarzã, que se abstinha de usar verbos para não se embaraçar com eles, e enviava as mensagens telegraficamente? Assim:
"Dallas bom pulmões", "Taffman E bom cérebro".
Ou, em fase posterior da evolução:
"Pegar bem fumar Dallas. Pegar teu", "Se você não gostar Taffman E, continuar milk-shake", "Mim também querer aposentadoria gorda integral Fleury 45 anos aumento garantido."
Claro que os criadores desses anúncios sabem formar o modo verbal imperativo. Ninguém pensaria o contrário. Mas vamos repetir para ninguém esquecer. Toma-se a segunda pessoa do singular e do plural do presente do indicativo, sem o esse, e as outras pessoas do presente do subjuntivo sem alterações:
Pres. Indicativo
continuo
* continua(s)
continua
continuamos
* continuai(s)
continuam
Pres. Subjuntivo
continue
* continue
* continuemos
* continueis
* continuem
Imperativo

continua
continue
continuemos
continuai
continuem
Como então escreveria o anúncio um redator que não fosse primo dos dois ou não tivesse frequentado a mesma escola?
"Se você não gosta ..., continue preferindo..."
Ninguém tem dúvida de que esses redatores sabem conjugar verbos no imperativo. Quando escreveram os anúncios e os espalharam por aí com justificado orgulho foi só para causar arrepios de prazer na multidão. "Falem mal, mas falem de mim", pensam eles. Não, na verdade pensam:
"Falais mau, mas faleis de mim." Viva o Tarzã, que sabia o que fazer com a língua.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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