São Paulo, sábado, 3 de dezembro de 1994
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Palmeira do Ceilão comete suicídio no Rio

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Como qualquer cidade sitiada, o Rio começa a dar sinais de uma certa perturbação dos sentidos. No alto do morro do Borel, por exemplo, havia uma cruz, um cruzeiro, como se dizia antigamente. De repente o cruzeiro de pedra virou mastro de bandeira verde-e-amarela, que a brisa do tráfico de drogas beija e balança.
Ao mesmo tempo, no Aterro do Flamengo, perto do monumento dos Pracinhas, estourou de repente em flores, cremes e castanhas uma certa palmeira, de nome "corypha umbraculifera", natural de Sri Lanka (Ceilão) e ali plantada por Roberto Burle Marx em 1965, quando ele ainda adornava, como um Claude Monet no jardim, o parque do Flamengo.
O escritório Burle Marx informa que a deslumbrante palmeira só devia dar flor dentro de mais uns 30 anos –mesmo porque, depois de cingir sua coroa de "60 milhões de flores e 500 quilos de sementes", ela morre. Por que floriu tão cedo, quando desabrochou o pavilhão auriverde no Borel? Pelo menos esse segundo mistério do Rio consegui elucidar.
É que ao mesmo tempo, em Ipanema, a Bolsa de Arte inaugurava a exposição póstuma de quadros de Burle Marx. A palmeira explodiu de propósito. Ela de certo soube, no mês de junho passado, da morte daquele que a plantara como quem pinta uma tela que só vai ficar famosa meio século depois. Resistiu, no momento, à notícia. Agora é diferente.
Burle Marx –além de arquiteto de paisagem, isto é, jardineiro gênio, como aquele Glaziou que nos traçou o Passeio Público e o Campo de Sant'Ana, ou aquele maior de todos, Le Nôtre, que fez os jardins de Versalhes– passa a ocupar também seu lugar de pintor de cavalete. Diante disso, "corypha umbraculifera", que tinha começado a florir desde o período das más notícias, perdeu o controle sobre si mesma. Fez haraquiri.
A exposição de quadros de Burle Marx montada pela Bolsa de Arte, com telas do Acervo Burle Marx e de coleções particulares, deixa-nos tranquilamente convencidos da importância do arquiteto de paisagens como pintor.
Um pintor moderno brasileiro de excelente técnica e que, de certa forma, evoca os outros, os grandes de sua geração. Há trabalhos seus que lembram Portinari, Di, Guignard, Tarsila. Duvido que quem quer que aprecie pintura não gostasse de ter na parede quadros de Burle Marx como "As Aguadeiras", de 1943, "Saxofone", de 1945, ou "Composição", de 1984.
Mas será prevenção nossa se preferirmos, mesmo entre esses belos quadros, aqueles que retratam flores em vez de gente, plantas em lugar da pura invenção abstrata? No "Vaso com Marantos e Filodendro" (reproduzido na capa do catálogo) ou no "Jarro com Trombeta a Tinhorão", ambos de 1940, e em tantos outros, quase sentimos a mão do pintor a nós estendida para nos levar ao jardim, ao seu sítio de Barra de Guaratiba.
A verdade é que Roberto Burle Marx foi um pintor importante dentro de uma geração de importantes mestres brasileiros, mas que só com seus jardins atingiu fama mundial maior que a de qualquer dos outros. Em 1967, comentando a exposição de pintura que então fez Burle Marx na Galeria Bonino, escreveu Clarival do Prado Valadares:
"Ele nos traz a imensa experiência do contemplativo da flora, sintetizada em cores, formas e vibração. O íntimo da mata, da folha e da flor, uma vez entrevisto na natureza e por longo tempo entendido como matéria de trabalho do arquiteto de paisagem, reflete-se nesses quadros em notas cromáticas ou formas abstratas."
(Abro aqui parênteses para chamar atenção para um curioso empobrecimento da nossa língua em relação às artes plásticas. Cada vez mais se chama Burle Marx de paisagista e sua arte jardineira de paisagismo. Acontece que paisagista sempre foi para nós o pintor de paisagens, como, para citar o exemplo clássico, Antonio Parreiras. No trecho de crítica que acabo de citar, Clarival do Prado Valadares seguiu o exemplo inglês ao usar, para indicar o artista plástico que compõe jardins, a expressão de arquiteto de jardins. Os franceses descrevem o grande Le Nôtre como um "dessinateur de jardins". Para os franceses, como era o caso para nós, "paysagiste" é aquele que pinta paisagens.)
Foi na sua categoria de maior arquiteto de paisagem do mundo que Roberto Burle Marx um dia se zangou comigo. Ele estava recriando o ambiente original da velha cidade mineira de Tiradentes e resolveu arrancar umas casuarinas que havia por ali, já que não havia casuarinas no Brasil no século 18, no tempo de Tiradentes.
Apesar de fiel ao mártir, a população local chiou, pois amava suas casuarinas, e eu, prestada a devida homenagem a Burle Marx (que aliás fazia aquele trabalho de graça), fiquei, num artigo de jornal, com o povo e as árvores a serem sacrificadas.
Lembrei que a casuarina tinha vindo de fora, da Austrália, como a manga veio da Índia e o jambo também, mas que já vicejava entre nós há muito tempo. No capítulo dois de "Dom Casmurro" Bentinho conta que mandou reproduzir no Engenho Novo a casa de Matacavalos em que tinha se criado, porta por porta, janela por janela. O jardim também tinha sido copiado: "Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro."
As casuarinas de Tiradentes foram erradicadas. Quem mandou eu me meter com aquela sumaúma que era Burle Marx, aquele ipê, íntimo do mato, da folha e da flor?

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