São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Justiça para cientistas

ISAIAS RAW
ESPECIAL PARA A FOLHA

É difícil a situação da Justiça, quando procura resolver uma pendência aplicando leis ou regras estabelecidas para outras atividades sobre a qual tem pouca vivência.
No caso dos pesquisadores Yeda Lopes Nogueira, do Adolfo Lutz, e Carlos Augusto Pereira, do Butantan, a Justiça condenou Pereira a uma indenização por não ter citado uma apresentação feita num congresso, submetendo-os aos critérios das publicações leigas em vez dos de padrões internacionalmente aceitos para publicações científicas.
A ciência evolui continuadamente, reexaminando as evidências e as conclusões anteriores.
Nesse processo, lançada uma hipótese (a menos que seja toda uma teoria estruturada, como a teoria da relatividade de Einstein), essa é uma propriedade pública, disponível para toda a comunidade científica investigar, comprovar ou reprovar.
Só depois de exaustivamente trabalhada pode ser submetida para revistas científicas. O que pode ser submetido para publicação são resultados das observações e experiências realizadas que procuram comprovar essa hipótese.
A comunidade científica internacional limita o direito de publicar e portanto divulgar a apenas aqueles cientistas que descrevem em detalhe as evidências obtidas e tiram conclusões objetivas.
As revistas que têm aceitação internacional são aquelas que mantêm um corpo editorial de alto nível, e que ao receber os manuscritos os submetem a outros cientistas, cujos nomes não são divulgados, e que examinam o manuscrito, as evidências e conclusões delas derivadas. Esses podem aceitar o artigo, pedir correções, maiores dados, ou, no caso das evidências ou conclusões serem inaceitáveis, recusá-los.
Para evitar julgamentos inadequados, o autor pode pedir ao corpo editorial nova revisão ou submetê-lo a outra revista, que tem outros cientistas como revisores.
Ainda que publicada numa revista de alto nível, as conclusões só têm aceitação quando são verificadas independentemente por outro cientista. Isso não ocorre pela simples repetição dos experimentos, mas pela extensão destes e das conclusões. Assim, se a raça de vírus rábico usada por Nogueira mata a célula, é preciso verificar se outras raças de vírus rábico também matam.
Esse processo continua de forma permanente e se for encontrado evidências que não concordam com a interpretação inicial, novas conclusões serão incorporadas na literatura científica mundial, e o artigo inicial relegado ao esquecimento.
Na realidade, como o processo de revisão é contínuo, a grande maioria dos artigos, mesmo publicados nas melhores revistas, acabam no esquecimento, ficando apenas as grandes descobertas, como a dupla hélice do DNA de Watson e Crick (que na realidade nem sequer fizeram um experimento, mas reinterpretaram os resultados apresentados por outro cientista que com informações certas chegou a conclusões erradas).
Portanto, a comprovação e extensão das observações não caracteriza plágio, mas faz parte do processo científico.
Depois de realizada a investigação e submetido o artigo a uma revista, mesmo que aceito, pode tardar mais do que um ano para sua publicação. Para permitir a discussão de idéias e resultados preliminares, existem os congressos científicos, onde de forma suscinta são apresentados trabalhos em andamento. Essas apresentações não têm a validade de publicações, e as idéias veiculadas durante congressos são frequentemente tomadas por outros pesquisadores para serem investigadas. O hábito de se referir a resumos de congressos ou informações pessoais (como foi feito por Pereira a Nogueira) é cada vez menos utilizado e mesmo vetado por certas revistas internacionais.
A velocidade de pesquisa é tal que revistas da maior importância recebem dois ou mais artigos que chegam à mesma conclusão.
A revista "Science" frequentemente resolve o problema publicando os dois artigos no mesmo exemplar. Se alguém examina a "Science", observa que os dois artigos, ainda que cheguem à mesma conclusão, o fizeram por caminhos paralelos, de forma que um comprova o outro.
O gigantesco número de publicações (uma pessoa não poderia sequer ler os nomes de todos artigos publicados diariamente, ainda que ficasse 24 horas na biblioteca ou no computador) faz com que seja comum um autor deixar de citar outro que tenha feito uma contribuição anterior na mesma área. Jamais foi concedida uma indenização a um cientista por não ter citado outro (nem mesmo nos Estados Unidos, onde cair na frente de uma casa dá direito a uma indenização a ser paga pelo proprietário).
A comunidade científica tem formas tradicionais de julgar. Julga, como um todo, a vida pregressa dos seus pares e não um artigo; reconhece seus títulos acadêmicos (mestrado e doutorado), suas descobertas, convida-o a participar do corpo de revisores de revistas, a dar conferências em congressos, participar de bancas de concurso e julgar pedidos de auxílio para pesquisas. Esse conjunto credencia o pesquisador, não frente à Justiça, mas frente à comunidade científica mundial.
É diferente quando se trata de uma pesquisa que tem valor comercial, como foi o caso da descoberta do vírus da Aids, que permitiu desenvolver reagentes para o diagnóstico da doença que faturam bilhões de dólares por ano.
Não foi o caso de Nogueira x Pereira, apesar de a primeira ter alegado que havia valor comercial. A observação que o vírus mata uma célula não tem valor comercial para diagnóstico ou para produção da vacina (que é feita aos milhões pela indústria veterinária com outra célula; ou para uso humano, que está sendo introduzida no Butantan com uma célula aprovada pela Organização Mundial da Saúde).
A condenação de um pesquisador pelas suas publicações deveria ser julgada por um conselho de cientistas, como é feito no caso de propostas de quebras de ética de médicos ou advogados.
O "Journal of Virology Methods", ao qual os dois autores submeteram seus artigos, já se pronunciou: na primeira instância aceitando um artigo e recusando o outro, e na segunda instância afirmando que "não tem planos de intervir numa disputa local entre autores". A Justiça nesses casos deve ser a última instância.

Texto Anterior: PEGA LADRÃO; CORN-FLAKES; MUAMBA
Próximo Texto: Entenda a condenação
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.