São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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A lição de Thomas Jefferson

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Foi num velório de um amigo comum. Lá estavam Joaninha, colega de ginásio, e Matias, fazendeiro do interior de São Paulo. A conversa entre os dois corria solta e com ares de consternação. Pensei que era em respeito ao falecido. Que nada, o tema era outro: política. Peguei o bonde quando Joaninha dizia:
"Jamais pensei que o partido que foi o baluarte da campanha da 'ética na política' viesse receber numerários de empresas que ele mesmo ajudou a combater."
"Eu também me choquei", acrescentou o Matias. "Afinal, é o partido cuja filosofia se dizia baseada na moralidade –embora eu nunca tenha caído nessa conversa. Sempre desconfiei de gente que vive sem trabalhar... Você não achou estranho o fato de aquele partido, no meio da apuração das denúncias de corrupção, ter desistido de levar até o fim a CPI das empreiteiras?"
"Foi tamanha a propaganda em favor da ética durante a campanha que eu havia me esquecido disso", falou a Joaninha. "Aliás, a minha irmã, tonta de leste a oeste, votou num barbudinho que dizia ser patrono do tal 'clube da moralidade'. Deu-se mal. O homem foi eleito deputado e, agora, a Chiquinha está arrependida até o dedão do pé."
"Isso aconteceu com muita gente da minha família", retrucou Matias.
"Como professora, eu passei a vida inteira repisando para os meus alunos a famosa frase de Thomas Jefferson que dizia: 'A arte de governar consiste na arte de ser honesto'. Repeti isso durante 40 anos por estar convicta de que os princípios que regem a conduta na vida pública são os mesmos que presidem a conduta na vida privada."
"Eu sou de um outro tempo", provocou o Matias. "Cresci dentro da cultura do 'rouba mas faz'... Nunca me conformei com isso, mas foi a única coisa que ouvi na minha juventude."
"Eu também vivi esse mundo, ponderou a Joaninha. Mas, ainda assim, sempre insisti com meus alunos que a ética na política tem de começar com a ética na família; no trabalho, no estudo e, sobretudo, nos partidos. Ninguém pode ter autoridade para pleitear a moral no mundo político enquanto não conseguir estabelecer a moralidade na sua própria vida."
Foi nesse ponto que os dois se viraram para mim e perguntaram à queima-roupa:
"E você só ouve? Perdeu a língua?"
Nunca tive tanta vontade de continuar calado. Compartilhei da indignação deles mantendo, porém, o meu otimismo. Entendo que a democracia é um processo lento, baseado em longas cadeias de erros e acertos –sendo que a descoberta dos erros é tão importante quanto os resultados dos acertos. Essa transparência que começa a surgir entre nós é crucial para o progresso democrático. A cura da corrupção é como a cura da tuberculose: depende de ambientes abertos e de muito ar "puro".
Os dois me chamaram de romântico, convidando-me a engrossar o coro das orações do velório, sugerindo ainda que orasse também pela classe política que, na opinião da Joaninha, está precisando muito mais das nossas preces do que o santo amigo Luciano que ali se despedia para subir ao céu.

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