São Paulo, segunda-feira, 5 de dezembro de 1994
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Polícia do Rio quer chacina em favela, denuncia pastor

Folha - O sr. tem um trabalho assistencial em várias favelas e presídios cariocas. Qual sua avaliação da situação do Rio hoje?
Caio Fábio - Há uma causa básica por trás do que vem acontecendo: a cultura de condescendência com a ilegalidade que o carioca desenvolveu durante décadas.
O maior exemplo é o tratamento que o jogo do bicho recebeu a vida inteira. O bicheiro era contraventor, mas era alguém com quem se podia tomar uma cerveja. Era uma coisa aparentemente inocente, mas que abriu espaço para que a ambiguidade chegasse à polícia.
Se a sociedade vive a ambiguidade, por que a polícia não tem o direito? As polícias do Rio também foram profundamente militarizadas durante o tempo em que o Rio foi capital. Com o golpe militar, essa polícia recebeu um papel de repressão muito grande.
Foi nessa época que a violência começou a se adensar nas favelas. Isso tudo misturado degradou as instituições de repressão de maneira avassaladora. Há policiais honestos, mas a polícia está podre.
Folha - O sr. acha então que com a polícia do Rio não há como combater a criminalidade?
Caio - Não. Com essa polícia, não dá. Se tem algo precisando de intervenção no Rio é a polícia.
Folha - Diante disso o sr. então defende a ação do Exército?
Caio - Foi a grande estupidez militar, na época do golpe, que colocou todos os presos políticos junto com os presos comuns. Os presos políticos não saíram criminosos da Ilha Grande, mas os criminosos ganharam uma ideologia e uma justificativa poderosa para sua própria criminalidade.
Surgiu a "robin hoodianização" da criminalidade do Rio, que passou a ter senso de organização e espírito de combatividade de guerrilha urbana. Os militares estão hoje aqui tentando resolver um problema que eles criaram com aquela falta de visão estratégica.
Folha - Duas tentativas feitas para o desarmamento pacífico de traficantes fracassaram. Os traficantes entregaram poucas armas e sem condições de uso.
Caio - Não foram fracassadas. Eu estive presente nas duas. Na primeira (na favela de Parada de Lucas, zona norte), eu não fiz nada. Estava chegando ao Palácio Guanabara, para um culto com o governador, que faço toda segunda-feira, e ele me chamou para ir com ele receber algumas armas.
Folha - O sr. tinha feito algum contato com essas comunidades?
Caio - No primeiro caso, quem falou foi a presidente da associação de moradores, que falou com os traficantes como mãe, pedindo para eles entregarem as armas. Eu me desapontei porque a mídia só quis enxergar as armas enferrujadas. Onze eram boas, oito não eram. Depois deixaram mais quatro escopetas novinhas.
Fui na segunda comunidade (Acari, zona norte), chamei o pessoal da associação de moradores e pedi que falassem com o pessoal para entregar armas de uma maneira séria, pelo menos 30% do arsenal, como demonstração de que querem iniciar um processo de solução para a situação.
Eles entregaram 28 armas novas, eu vi, tinha AR-15 na caixa, mas a polícia segurou as armas e disse que eram todas enferrujadas e que era outra encenação.
Folha - Então, na sua avaliação, há um complô dentro da polícia contra o governador Nilo Batista?
Caio - Não tenha dúvida, a polícia odeia o Nilo. A polícia odeia a idéia de que essa coisa toda possa terminar sem um banho de sangue. Quanto mais rápido eles matarem esse pessoal todinho da favela, mais rápido eles eliminam a possibilidade de que eles digam quem são os reais chefes disso dentro da polícia. É uma questão de queima de arquivo.
Folha - Então os famosos "tubarões" do tráfico estão dentro da polícia?
Caio - Também. Tem gente da vida pública da cidade, gente que acabou de ser eleita e uma boa parte na polícia. As pessoas da favela são os executivos estúpidos dessa história.
Folha - No dia seguinte à entrega das armas de Acari, falaram que os traficantes não iriam entregar as armas por uma questão de defesa do território.
Caio - Eles tinham medo de uma invasão. Mas já foi um grande passo. Eles tinham 90 armas e entregaram 28. Eles mandaram me dizer que iam fazer assim para ver a evolução das coisas. Se tudo andasse bem, eles poderiam fazer um segunda e uma terceira entrega.
Folha - Mas o processo parou. O que houve?
Caio - Eles acharam que foram ridicularizados pela mídia. Não vamos ser ingênuos, isso não tem nada a ver com bondade de traficantes. Eles sabem que se a guerra acontecer, vão morrer sem apelação. O Exército não vai mandar para lá menininhos. Vai mandar seu melhor contingente e vai entrar matando porque não pode correr o risco de uma derrota.
Além disso há a pressão familiar, a pressão dos moradores. Traficante tem mãe, mulher e filho. Se o Exército quiser fazer um trabalho sério, precisa pegar esses tubarões que todo mundo sabem quem são. Se você for a um presídio, todo mundo lá sabe quem são, mas não dizem para não amanhecerem mortos dentro da cela.
Folha - O sr. costuma visitar comunidades carentes. Qual a avaliação que o sr. faz dessas visitas?
Caio - As pessoas estão apavoradas porque sabem que o que há agora é o silêncio antes do confronto. Quem está tranquilo somos nós, os do asfalto.

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