São Paulo, sexta-feira, 9 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tom Jobim era a Coca-Cola da música popular brasileira

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Choremos todos com a devida profusão, pois acaba de morrer o nosso melhor Antonio, o nosso melhor Antonio Carlos, o nosso melhor Antonio Carlos Brasileiro, o nosso melhor Antonio Carlos Brasileiro Jobim, o nosso único Tom Jobim, o nosso único Tom perfeito.
Que ninguém embirre com o clichê, fatalmente invocado, de que sem ele a música popular brasileira ficou mais pobre, pois foi isto mesmo que aconteceu. E como a música nunca deixou de ser a expressão mais elevada de nossa cultura, não há como evitar o que em tantas outras ocasiões soou como uma hipérbole: a morte de Tom deixa um vazio que não tão cedo, quem sabe nunca, será preenchido.
Caymmi? Chico? Caetano? Eles pensam a mesma coisa. Porque também para eles, Tom era um gênio insubstituível, o mais completo e inspirado compositor que o Brasil já teve. Síntese do que nos legaram Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Pixinguinha e Ary Barroso, versátil mestre do samba, do samba-canção, da valsa, do choro e até de peças de câmara, Tom não era apenas o nosso Gershwin –o que já seria muito–, mas algo mais: há tempos não havia no mundo quem lhe chegasse aos pés. "Nem (Henri) Mancini, nem (Michel) Legrand", já dizia Vinicius de Morais, 30 anos atrás, numa crônica para o "Diário Carioca".
Profética glorificação. Afinal, em 1964 Tom ainda não era a nossa Coca-Cola musical, onipresente em todos os quadrantes sonoros. "Garota de Ipanema" apenas iniciava uma carreira internacional que a levaria ao ranking das dez músicas mais gravadas de todos os tempos. No mundo inteiro. E com os mais inesperados intérpretes –quase os mesmos que também transformaram "Samba de uma Nota Só", "Corcovado", "Insensatez", "A Felicidade" e "Desafinado" em sucessos universais.
Admirado em todo canto, conquistou idolatras até fora de sua seara. Não foi um músico quem disse que gostaria que a sua arte "tivesse qualquer coisa da pintura de Renoir e a música de Antonio Carlos Jobim", mas o ator Peter Sellers.
Quando soube disso, Tom limitou-se a sorrir. Não se empolgava com a fama, nem por causa dela mudou seus hábitos e sua personalidade. Vivia à disposição de qualquer olhar e ao alcance de qualquer cumprimento. Podia ser visto todos os dias almoçando na churrascaria Plataforma, no Leblon (zona sul do Rio), aos sábados fazia ponto num bar da Cobal, alguns metros dali, e de manhã bem cedo costumava zanzar pela farmácia Piauí, também naquela vizinhança, onde enriquecia a sua farmacopéia.
Era um expert em remédios. Não na mesma medida de outros notórios saberes: fauna e flora, ventos e nuvens, marés e estrelas –nenhuma das coisas da natureza parecia estranha ao autor de "Águas de Março". Parecia conhecer todos os pássaros, muitos só pelo vôo e pelo pio, e a alguns deles (sabiá, matitaperê etc) dedicou um tema, não se vexando de reservar um LP ao subestimado urubu. "Já era ecologista antes dessa palavra ser inventada", dizia sempre, com o mais justo orgulho. "Desde menino", precisava, "quando isto aqui era um paraíso".
Isto aqui: o Rio dos anos 30 e 40, o pano de fundo de sua infância numa Ipanema idílica, para onde mudou quando tinha quatro anos. Nascera na Tijuca, na zona norte da cidade, a 25 de janeiro de 1927, neto de pianistas, sobrinho de seresteiros e violonistas. Meio por acaso aprendeu música, tomando aulas de pianos com o alemão Hans Joachim Koellreutter, que pouca serventia prometiam ter para um rapaz encaminhado para a carreira de arquiteto. Mas, para felicidade geral da nação, Tom acabaria trocando a prancheta pelo piano. Com as bençãos, presume-se, de Frank Lloyd Wright, para quem a arquitetura era "a música petrificada".
Quase petrificada, na verdade, estava a nossa música popular, no início dos anos 50. Tom a transformaria de forma radical, com o que aprendera com Chopin, Debussy e Ravel. "Sem o impressionismo francês, a bossa nova não teria sido o que foi", dizia, com endereço certo: aqueles que teimavam em só ver na bossa nova a influência do jazz.
Pianista de boate e assistente de Radamés Gnatalli, logo estava cuidando dos arranjos na Continental e dirigindo o setor artístico da Odeon. Em abril de 1953, a primeira composição em disco: "Incerteza", de parceria com Newton Mendonça, na voz de um jovem discípulo santista de Sylvio Caldas, chamado Maurici Moura. No ano seguinte, o primeiro sucesso, "Teresa da Praia", de parceria com Billy Blanco, gravado pela dupla Dick Farney-Lucio Alves. Uma nova maneira de compor samba-canção entrava em cena para nunca mais sair do ar. Em 1956, a primeira parceria com Vinicius de Morais ("Orfeu da Conceição"). Em seguida, o lendário LP com Elizeth Cardoso ("Canção do Amor Demais") e os primeiros surtos da bossa nova.
Ao longo das últimas três décadas, enquanto a bossa nova se evaporava e vários de seus ídolos desapareciam, Tom seguia, impávido, a sua vereda particular, infensa aos câmbios do gosto e das modas, acumulando glórias e obras-primas. Gravou com Frank Sinatra e Nelson Riddle, ouviu bis em inúmeros idiomas, fez trilhas sonoras para Hollywood e para a TV Globo, ganhou troféus e comendas (inclusive da França), sem jamais se entregar ao comodismo da consagração.
Tampouco mudou seu jeito de ser: simples, bonachão, carioquíssimo. Da boca pra fora, andava envergonhado de ser brasileiro. "Estão acabando com a nossa paisagem", resmungava com frequência. Também se afligia com outras mazelas nativas. "O Brasil persegue os homens de bem", queixou-se, tempos atrás, quando o criticaram por ter cedido os direitos de "Águas de Março" para um jingle da Pepsi-Cola. No íntimo, porém, adorava como poucos a terra que nunca deixou de ser uma promessa de vida em seu coração.

Texto Anterior: Morre o maior compositor brasileiro
Próximo Texto: Compositor estabeleceu modelo de harmonia para a bossa nova
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.