São Paulo, segunda-feira, 12 de dezembro de 1994
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O Supremo e as emendas constitucionais

JOAQUIM FALCÃO

Para reformar a Constituição, o governo Fernando Henrique deverá dar atenção ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal. Talvez mais a este do que aquele! E a razão é simples. No Congresso, o futuro governo terá a maioria, e poderá negociar. No Supremo, inexistem maiorias e negociações.
O leitor atento perguntará: mas a tarefa de fazer leis é do Congresso, não é do Judiciário. O Supremo não participa na reforma da Constituição. Não é legislador. Engano. O Supremo provavelmente participará. Vejamos.
As emendas propostas, aprovadas e transformadas em artigos da Constituição, inevitavelmente contrariarão alguns grupos sociais organizados. Esses grupos irão bater às portas do Judiciário, sob o argumento de que as emendas contrariam as cláusulas pétreas (art. 60). Contrariam a forma federativa do Estado, o voto secreto, a separação do poder e os direitos e garantias individuais. Mesmo que transformadas em artigos da Constituição, as emendas correm o risco de serem consideradas inconstitucionais. Estaremos diante de aparente paradoxo: uma constituição inconstitucional!
Por exemplo: o fim da estabilidade do funcionalismo e aposentadoria por tempo de serviço feririam direitos e garantias individuais. A criação do Conselho da Magistratura aboliria a separação dos poderes. A redistribuição de competências entre União e Estados contrariaria o princípio federativo, e por aí vamos.
Será secundário saber se os prejudicados têm ou não razão. Se ganharão ou não na Justiça. O importante é constatar que a possibilidade de arguir no Supremo a inconstitucionalidade de emendas constitucionais aprovadas pode acarretar consequências político-jurídicas. E nem se diga que esta é uma hipótese remota. Não é. Tem precedente, e recente.
Há pouco tempo o Supremo decretou inconstitucional a emenda que instituiu o IPMF porque contrariava o princípio da anualidade fiscal. O Supremo considerou que uma mera norma técnica –a cobrança de impostos no mesmo ano em que foi criado–, tendia a abolir direitos e garantias individuais. Uma interpretação no mínimo polêmica.
O princípio da anualidade não consta da Declaração dos Direitos do Homem das Nações Unidas, nem, ao que se saiba, de qualquer outra Constituição. Se o Supremo se restringisse apenas à análise da legalidade do rito processual não haveria problemas. Mas o Supremo avaliou o mérito, o conteúdo da emenda. Esta pode ser uma tendência. Que trará consequências, independentemente da intenção do próprio Supremo.
Primeiro, entre a aprovação da emenda e a decisão final do Supremo, o país viverá um período de insegurança jurídica. Cidadãos e empresas não saberão se é melhor pagar ou não os novos impostos. Se valerá a pena aposentar-se logo, ou deixar para depois. E como se comportará o funcionário público diante do fim da estabilidade contestada no Judiciário? Tudo ficará suspenso, pois o Supremo poderá decretar a Constituição inconstitucional!
Segundo, queira ou não, o Supremo estará participando da reforma do Estado e das políticas do novo governo. Não se trata, como alertou o ministro Celio Borja, do Supremo, de agir politicamente. Trata-se da constatação inevitável de que existem consequências políticas distintas diante de argumentações juridicamente concorrentes. O Supremo terá de optar entre caminhos legais potencialmente conflitantes. Será no mínimo um "legislador negativo". Que não apresenta, mas que barra soluções.
Terceiro, e mais importante, ao decretar uma emenda inconstitucional o Supremo estará discordando do Congresso. Se o Congresso aprovasse emenda que pretendesse abolir as cláusulas pétreas, aí o Supremo teria razão. Mas não será este provavelmente o caso.
O Congresso aprovará emendas que entende não serem contrárias às cláusulas pétreas. Se o Supremo discordar, teremos uma questão fundamental para o país: o Congresso votou constitucionalmente uma emenda, compatível com um entendimento razoável das cláusulas pétreas, pode o Supremo discordar? Qual o limite da intervenção do Supremo? Ou seja, qual a competência discricionária do Congresso?
Esta pergunta surgiu no recente seminário promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Constitucional em São Paulo, sob a liderança do professor Celso Bastos. Serve de alerta ao próximo governo para que defina a estratégia de reforma constitucional, não apenas em relação ao Congresso. Mas em relação ao Supremo, também.

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