São Paulo, terça-feira, 13 de dezembro de 1994
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Podemos não ser parte do mundo?

ROBERTO CAMPOS

O mundo mudou muito de 80 para cá, mas algumas cabeças, aqui na terra dos tupiniquins, continuam penduradas nos postos ideológicos dos anos 50 e 60 e de vez em quando ainda se lêem opiniões sobre como, em vez de exportar, devíamos estar produzindo bens de consumo popular para o mercado interno. É verdade que tais tolices já são semiclandestinas nos meios intelectualmente atualizados, mas políticos primários e pessoas inocentes podem tropeçar nelas e cair por cima de alguém que não tenha nada com a história.
Depois de 1930, o Brasil foi infiltrado por várias ondas de idéias de nacionalismo autárquico que, até hoje, deixaram marcas no pensamento de certos segmentos da sociedade, entre eles, os militares. No contexto dos anos 30-66 –toda uma geração, portanto–, esse pendor para o fechamento externo tinha a sua explicação.
A Depressão sem precedentes da década de 30 cortou brutalmente os preços e o volume do comércio exterior; provocou a compartimentação do mundo em blocos monetários e econômicos antagônicos; e acirrou de tal maneira os conflitos históricos e políticos (os quais, ao invés de resolver, a Primeira Guerra havia agravado) que, desde meados da década, a perspectiva de uma nova guerra toldava cada vez mais os horizontes. Isso forçou a economia brasileira a seguir o caminho da substituição de importações, no qual já se havia iniciado duas vezes, em períodos de dificuldades de importar, no começo da República e na Primeira Guerra.
As idéias de autarquia surgiram de considerações militares, na Alemanha, na Primeira Guerra, e depois na Itália, durante as sanções por causa do conflito com a Etiópia, mas provavelmente ganharam apoio mais amplo em consequência dos violentos altos e baixos dos preços no comércio internacional, sobretudo com a Depressão. No caso brasileiro, a crise dos preços agrícolas, antes mesmo de 1929, teria um enorme impacto, porque a nossa pauta de exportações era totalmente dominada pelo café. A queda de preços levou à destruição de produtos agropecuários (o Brasil queimou café) para limitar a oferta.
Durante a Segunda Guerra, a interrupção dos fluxos de comércio com os países industriais da Europa e as restrições com os Estados Unidos, fizeram com que, no Brasil, a base industrial já diversificada operasse e improvisasse até o mais extremo limite, com preços relativos muito favorecidos, para atender o mercado interno e o dos países vizinhos. Em 1946, o Brasil já tinha um empresariado industrial consciente da sua importância, que pressionaria para o país continuar no seu processo de desenvolvimento por substituição de importações.
Deve se observar que, durante os primeiros dez anos do pós-guerra, os Estados Unidos, absortos nos problemas da Guerra Fria, deram prioridade (sistematizada no Plano Marshall) à recuperação econômica de países devastados. No Brasil (que havia contribuído para o esforço de guerra com sacrifícios apreciáveis) a atitude americana causou decepções, que coincidiram com um realinhamento ideológico de grupos simpáticos à União Soviética.
Nesse período, forma-se quase um consenso nacional a favor de se promover a industrialização e a modernização econômica sob a liderança do Estado. Era o espírito da época e, afinal, parecia hipocrisia falar em deixar por conta do mercado (e, sobretudo, dos capitais estrangeiros) as decisões sobre o ritmo dos investimentos e os setores beneficiados, uma vez que os próprios Estados Unidos patrocinavam, com o Plano Marshall, uma experiência internacional de planejamento em escala jamais imaginada.
Participei diretamente nesse esforço de industrialização dirigida, através do BNDE, no governo Vargas, e do Programa de Metas de Juscelino em plena atividade política, no meu terceiro mandato popular, acho que cabe um esclarecimento sobre minhas idéias, pelas quais sempre paguei o preço que fosse. Sou um liberal cada vez mais convicto e, como é reconhecido, absolutamente consistente ao longo de mais de 40 anos de vida pública. Haverá nisso, como querem alguns, uma incoerência com o meu papel de formulador do uso do Estado no desenvolvimento?
Não. Nenhuma incoerência. Um liberal é, antes de mais nada, um homem da razão como meio e da liberdade como fim. Há momentos em que o Estado é, de fato, o instrumento mais eficiente e assim foi nos anos 50, como viria a ser, depois de sua recuperação no governo de Castello Branco, na modernização econômica da segunda metade dos anos 60. A propósito, é oportuno acrescentar que nem Vargas nem Juscelino pretendiam um Brasil autárquico, isolado das economias de mercado.
Vargas apenas sancionou o monopólio da Petrobrás (que foi votado pelos seus mais ferrenhos adversários da UDN) e Juscelino era um entusiasta da liberdade de ingresso de capitais e tecnologia estrangeiros. Fez-se substituição de importações porque, no contexto internacional dos anos 50 (quando ainda havia restrições aos movimentos de capitais e ao intercâmbio comercial) era a opção mais racional para rapidamente expandir a base industrial e gerar economias de escala. Estava, então, subentendido que o Brasil deveria participar competitivamente na economia mundial quando esta se fosse normalizando. A substituição de importações não era um dogma. Era um mero juízo de conveniência nas circunstâncias.
Depois dos duros esforços do governo Castello Branco (1964-67) para recuperar a economia e conter a inflação, a estrutura econômica brasileira estava amadurecendo para concorrer no cenário internacional, como demonstrado na fase do milagre brasileiro de 68 a 73. Mas na crise mundial de 74-82 cometeu-se um erro que nos faria perder o compasso daí por diante.
Enquanto a grande maioria dos países aumentava os preços internos dos derivados de petróleo, limitava gastos públicos e adotava políticas monetárias austeras, o Brasil deixava o consumo solto e acelerava a substituição de importações numa direção claramente autárquica (inclusive em matéria tecnológica) e preferia o endividamento externo oneroso aos investimentos de risco estrangeiros. Essa política econômica teria sido adequada logo antes da Segunda Guerra Mundial, mas nada mais tinha a ver com o contexto internacional dos anos 70, quando não era provável um prolongado conflito militar em grande escala.
A consequência foi uma sucessão de problemas em cadeias: a economia cada vez mais fechada, o bestialógico das "reservas do mercado", a aceleração inflacionária –moderada de 74 a 79, mais rápida de 1980 a 85 (por causa do "choque dos juros internacionais" e da crise da dívida, detonada pelo México, no final de 82) e explosiva depois de 85– e, neste caso, por má gestão econômica, pelo descontrole das contas públicas e pela suicida Constituição de 88.
Foi assim que o Estado brasileiro veio dar no estado a que chegamos, para dizer como o velho Aporelly. O equilíbrio monetário, a liberdade de iniciativa e a integração competitiva no mercado internacional são o único caminho para um país como o Brasil, que conta com enormes recursos, inclusive o mais escasso de todos –capacidade empresarial. Sendo a décima economia industrial do mundo e, já 76% urbana, não se pode permitir luxos de Albânia stalinista. Nosso país não pode ficar como o último reduto dos dinossauros estatais...

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