São Paulo, quarta-feira, 14 de dezembro de 1994
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Almeida Prado faz belo elogio da velhice

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Algum psicólogo americano já deve ter pesquisado, com cronômetro e máquina de calcular, o número de vezes por dia em que pensamos em nós mesmos. Deve ser rara, afinal, a circunstância em que a gente se esquece da gente e se interessa por outra coisa: o mundo, a economia, o trabalho. Mesmo nessas ocasiões, o pequeno demônio do narcisismo, o personagem fundamental de nossas vidas, a saber, o Ego, intromete-se com seu poder de sedução e sonho.
Vou viajar nestas férias? Vou comprar uma roupa nova? Fulana vai me telefonar? O que Beltrano acha de mim? Sou um fracassado? Sou feliz? O que quero da vida?
Perguntas desse tipo nos assaltam a todo momento. Em vão julgamos estar comprometidos com a objetividade do mundo, com as coisas, com as outras pessoas. No fundo, o único assunto que interessa à gente é a gente mesma. Só consigo pensar com o meu corpo; ele me ocupa.
O estranho é que, com todas as perguntas a que a gente se dedica –vou pôr meu dinheiro na poupança? teria sido ridículo na festa de sábado passado? estou ficando gordo?–, o estranho, repito, é que raramente a gente formula uma pergunta essencial.
Essa pergunta é a seguinte: o que serei, o que terei sido, quando eu for velho? O que será de mim mesmo na velhice? O que é ser velho, ou seja, o que é ser eu mesmo, despojado de tudo que me ocupou durante a vida? Quem sou eu, vencidas as ilusões, dissipada a vida, anulado todo o resto?
O suplemento "Mais!" do último domingo publicou um texto espantoso, assustador e belíssimo de Décio de Almeida Prado, intitulado muito a propósito de "Oração aos Velhos". O autor, crítico teatral consagrado, agradece à beira dos 80 anos uma homenagem que lhe foi prestada.
À modéstia de praxe se acrescenta uma modéstia mais secreta, uma retrospecção irônica e ao mesmo tempo cândida a respeito do que foi a vida. Décio de Almeida Prado diz, de si mesmo e de sua obra, que foi "promovido por antiguidade", não "por merecimento".
Há os autores, prossegue Décio, que marcam sua presença na história literária por meio de lances geniais. Pensando na própria vida, Décio considera que seu papel, como crítico de teatro, surgiu por acaso –que ele, hesitando na juventude entre ser médico e poeta, terminou sendo "encarregado" pelos amigos à função de crítico e de teórico do teatro brasileiro. Não os incrimina. Está contente do que é, está contente do que foi.
Estamos diante do texto de um homem realizado, de um homem que pode dizer: "Felizmente a minha idade, se me permite ainda fazer perguntas, desobriga-me de dar respostas. Liberado pela velhice, já sem ter a preocupação de parecer moderno... posso finalmente dar-me ao luxo de ser apenas eu mesmo".
Talvez este seja o maior elogio da velhice que já ouvi. Já não me importo com coisa nenhuma, sou eu mesmo: há uma estranha junção de felicidade e de amargura nessa idéia.
O texto de Décio de Almeida Prado lembra-me os últimos poemas de Thomas Hardy, especialmente aquele, composto no seu 86º aniversário, em que se reconcilia com a vida pelo fato de esta não ter prometido muita coisa.
Será isto o que eu quero? Será apenas isto? Esta realização amarga, esta felicidade modesta, esta completude fria? Talvez sim.
Décio de Almeida Prado, como Antonio Candido, como meu tio Ruy Coelho, pertenceu a uma geração que, pela primeira vez, moldou o caráter daquilo que seria o "intelectual brasileiro".
Eles eram, no dizer de Oswald de Andrade, os "chato-boys": excessivamente sérios para o ambiente cultural brasileiro. Levaram a seriedade até o fim. A meio caminho entre o diletantismo jornalístico e a presunção acadêmica, realizaram a síntese entre boêmia e estudo, entre palhaçada privada e rigor público. A geração de "Clima", a que pertencem os nomes citados, modelou o que seria, com tropeços, o intelectual brasileiro, oscilando entre circunspecção universitária e bonomia nas horas de ócio.
Décio de Almeida Prado me encara, com olhos azuis e bons, na orelha de seu livro "Peças, Pessoas, Personagens", editado pela Companhia das Letras. A foto transmite a idéia de um crítico "tão amável quanto penetrante" –alguém disse isso de Schumann, compositor e nas horas vagas jornalista. Sei de uma coisa: Décio não se perdoa menos do que às pessoas que criticou.
Atrás da bonomia, entretanto, não é difícil ver o quanto de frieza, ou melhor, de desencanto, está presente. Característica comum de sua geração, o ímpeto crítico cercou-se de rigor informativo, de cortesia, de exigência.
Procuro pensar no que nos ensinaram esses mestres como Décio e Antonio Candido: ensinaram-nos, sobretudo, as virtudes da boa educação –capaz de cortar todo viés polêmico, toda confiança nas revoluções intelectuais– que eles encaram, sabiamente, como episódios a serem notados com respeito, mas "cum grano salis".
É esse grão de sal, esse grão de desconfiança, que ressalta do texto de Décio de Almeida Prado. É símbolo do que consiste em ser crítico. Profissão pouco generosa, coisa de velhos, que assegura, apesar de tudo, algum contentamento.

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