São Paulo, quarta-feira, 14 de dezembro de 1994
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Ainda não é hora da independência

MAILSON DA NÓBREGA

A idéia da independência do Banco Central voltou à tona. Tornamos a ouvir que os países industrializados têm moeda estável porque dispõem de banco central independente. Logo, se fizermos o mesmo, acabaremos de vez com a inflação. As duas afirmações são controversas, embora muita gente acredite que são verdadeiras.
Poucos bancos centrais nos países da OCDE desfrutam de autonomia formal. Na União Européia, somente agora essa condição lhes está sendo atribuída, em face do tratado de Maastritch. No Japão, um dos mais estáveis desse grupo, não existe a independência formal.
Nesses países, mesmo que a lei não proíba, o governo não interfere no banco central, em virtude de uma cultura consolidada sobre o seu papel. A sociedade percebe a necessidade da autonomia para a estabilidade da moeda. Demitir diretores (possível em muitos casos) e intervir nas políticas seria romper a regra e enfrentar o julgamento dos eleitores.
A independência do banco central depende também de outros requisitos. Para o Banco Mundial, "a independência não decorre apenas da lei, mas também dos arranjos informais com outros órgãos públicos, das atitudes de personalidades-chave do governo e do banco e da qualidade técnica dos seus departamentos".
No Brasil, espera-se que a independência produza a austeridade nos gastos do governo. Proibir-se-ia o financiamento do Tesouro. O Banco Central resistiria a pressões para criar liquidez destinada à colocação da dívida mobiliária e poderia liquidar bancos estaduais quebrados. O setor público seria obrigado a se ajustar.
O raciocínio é falso. A Constituição já contém aquela proibição e nem por isso conseguimos ainda vencer o processo inflacionário. O desregramento nos gastos deriva da mesma Constituição –excesso de vinculações de receitas e distributismo irresponsável nas despesas– e não de ação inconsequente do governo. A questão dos bancos estaduais é muito mais complexa do que o desejo de sair fechando suas portas a golpes de autoritarismo.
É politicamente ingênua a defesa da independência do nosso Banco Central. Não leva em conta o quadro institucional nem a propensão do sistema político brasileiro à ingovernabilidade. Ignoram-se as coalizões de veto existentes no Congresso e as dificuldades de mobilizar os recursos de poder para enfrentar os grupos de interesse.
Essa ingenuidade foi apontada pela socióloga Lourdes Sola em obra que organizou recentemente ("Estado, Mercado e Democracia: Política e Economia Comparadas", edit. Paz e Terra, 1993). Ela chamou a atenção para as diferenças irredutíveis entre países e regiões, condenando o voluntarismo técnico "que consiste em tentar transplantar soluções que deram certo em algum lugar" simplesmente porque lá funcionaram.
A independência do banco central a qualquer custo é defendida por economistas desligados das questões institucionais e de poder, por advogados que acreditam na força transformadora da lei –sem considerar o estágio da sociedade– e por empresários que vêem a medida como uma arma para controlar o gasto público e assim evitar o aumento de tributos.
A ingenuidade, no caso, é querer que se importe uma idéia sem a consideração adequada das circunstâncias sob as quais opera o governo no Brasil. Seria pensar que uma organização bem-sucedida noutras plagas fosse capaz de, num passe de mágica, resolver todas as restrições institucionais, políticas e culturais que em grande parte explicam nossos fracassos na luta contra a inflação.
A independência do Banco Central é um objetivo a ser permanente perseguido. Mas antes ou simultaneamente será preciso enfrentar outras prioridades. Sem amplas reformas estruturais de nada adiantaria a medida. No atual regime fiscal, o ministro da Fazenda comete crime de responsabilidade se não liberar recursos para gastos previamente definidos na Constituição. O funcionalismo público é estável. As despesas obrigatórias representam mais de 90% das receitas.
Será preciso melhorar a organização dos partidos e o funcionamento do Congresso para resolver o déficit decisório, engendrar condições satisfatórias de governabilidade e promover as reformas. Sem isso, a independência do Banco Central será insustentável. Equivaleria a colocar o carro à frente dos bois. O rabo balançaria o cachorro, como dizia há tempos Pedro Malan quando criticava o endividamento externo.
Em seu editorial do último dia 12, esta Folha também alerta para o risco de a independência tornar-se uma mera obsessão sem correspondência na realidade. De fato, sem o ajuste fiscal, a independência agradaria uma minoria de ingênuos e desinformados, mas poderia ser um fracasso capaz de sepultar a idéia por um bom tempo... Os arquitetos de obras feitas iriam dizer que essas coisas não funcionam abaixo do Equador.

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