São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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A balança viciada

FÁBIO KONDER COMPARATO

Erramos: 19/12/94

Por um erro de digitação, a palavra alemã Abwägung foi grafada sem trema neste artigo.
Afirmo, desde logo, minha rejeição ao lugar-comum de que as decisões judiciárias não se discutem nem se criticam. Essa falsa máxima originou-se da monarquia absoluta, em que os juízes se pronunciavam sempre em nome do rei, cuja augusta pessoa não estava sujeita a responsabilidade alguma. Numa República, ao contrário, nenhum órgão do Estado pode se eximir de prestar contas do seu desempenho, exatamente porque ninguém é proprietário do poder, mas apenas titular de funções.
O Judiciário, como todos os demais órgãos do Estado, não julga por direito próprio, não é dono da Justiça, mas existe e deve agir como delegado do povo, único titular da soberania. As suas decisões, portanto, como as de qualquer outro órgão público, podem e devem ser examinadas e criticadas à luz dos princípios próprios do regime constitucional.
A decisão absolutória do ex-presidente Collor é tecnicamente reprovável e politicamente desastrosa.
Sob o aspecto técnico, é incoerente, para dizer o mínimo, que um tribunal desconsidere, por irregulares, provas importantes trazidas por uma das partes, e em seguida julgue que essa mesma parte foi desidiosa em provar as suas alegações. No processo penal, em particular, é inaceitável que um juiz ou tribunal abrigue a sua decisão absolutória na falta de iniciativa do Ministério Público em provar a acusação, quando o Código de Processo Penal dispõe, claramente, que o julgador "poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante" (art. 156).
Das duas uma: ou a maioria dos ministros do Supremo Tribunal esqueceu-se dessa norma processual, ou então, desde o início do processo, não tinha dúvida alguma sobre a inocência do réu. Em qualquer das hipóteses, o tribunal sofrerá o constrangimento de passar desde logo, no foro da opinião pública, da posição de julgador à de réu.
É verdade que, para decidir expelir do processo a prova dos computadores e das gravações apreendidas durante o inquérito policial, no escritório do famigerado PC Farias, o tribunal invocou a exigência constitucional do mandado judicial de apreensão ou interceptação.
A justificativa é imprestável. Em primeiro lugar, em nenhum dos países em que essa garantia é reconhecida jamais se sustentou que ela tem caráter absoluto. Ao contrário, a Corte Constitucional alemã, por exemplo, sempre insistiu na necessidade de se sopesarem ("Abwagung") os bens ou interesses em conflito.
Se se trata de defender a vida humana ou um bem público de relevante valor, como a probidade na chefia do Estado, é inadmissível que o direito do réu à preservação de sua intimidade possa prevalecer. Ademais, mesmo quando uma prova é desconsiderada pelo fato de ter sido obtida de modo irregular, os fatos a que ela se refere não podem ser, "ipso facto", tidos por inexistentes, se corroborados por indícios e circunstâncias.
Ora, tanto a Comissão Parlamentar de Inquérito quanto a Polícia Federal provaram que o ex-presidente percebeu, em menos de dois anos de mandato e contando por baixo, a bagatela de US$ 6 milhões de correntistas fantasmas...
Muito mais graves, no entanto, são os efeitos dessa desastrada decisão sobre o funcionamento de nosso regime político.
A Constituição declara que todo o aparelho administrativo do Estado está sujeito ao princípio da moralidade (além da legalidade e da impessoalidade) e que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos e a perda da função pública, além de outras sanções pecuniárias.
O que está implícito nessas disposições é, obviamente, o princípio da igualdade de todos perante o ordenamento jurídico, a inexistência de dois critérios de julgamento, de uma Justiça de graúdos e poderosos e outra de pobres coitados.
Mais: o Estado Democrático de Direito exige que os poderosos sejam julgados mais rigorosamente, porque o exercício de uma magistratura política, sobretudo daquela ligada à chefia do Estado, deve servir de modelo e exemplo a toda a administração pública.
Não creio exagerado supor que a malfadada decisão absolutória do ex-presidente e de seu famoso comparsa, proferida pelo mais alto tribunal do país, sobretudo se combinada com a eventual anistia do presidente do Senado Federal, irá confirmar no povo a sólida convicção de que a lei penal, em nossa sereníssima República, só existe mesmo para o vulgo vil sem nome, de que falava Camões.

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