São Paulo, terça-feira, 20 de dezembro de 1994
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Comerciais indecentes

ORLANDO MARETTI SOBRINHO

Há coisas piores que a morte. Por exemplo, o descaso, a negligência e o desrespeito a que são submetidas as pessoas nos hospitais da rede pública em São Paulo. Minha família pôde constatar tragicamente isso no Pronto-Socorro Municipal do Jaçanã, zona norte da cidade, esperando atendimento ao meu tio de 75 anos, vítima de atropelamento no último dia 3.
No domingo, 4, depois de aguardar por dez horas a chegada de um médico para avaliação do estado de meu tio, assistimos perplexos uma sequência de cenas de horror. Os pacientes amontoados pelo corredor, os funcionários queixando-se da precariedade das condições de trabalho, nenhum médico para os casos mais graves.
Nesse quadro dantesco, chega uma equipe de gravação de vídeo. Mobilização geral para mudança do cenário. Os pacientes, independente do seu estado, foram todos empurrados para as salas laterais. No corredor, então vazio, figurantes circulavam com ar tranquilo e compenetrado, empurrando macas, portando frascos de soro, anotando em pranchetas.
Minha tia, muito inocente, aproximou-se de um rapaz, vestido de branco, que ostentava um estetoscópio em torno do pescoço e perguntou-lhe: "O senhor é médico?" A resposta: "Não, sou ator. Posso ajudar?" Não poderia, é óbvio.
Meu tio foi liberado, pois não conseguimos sua internação no Hospital São Luíz Gonzaga, ali ao lado, apesar da gravidade do seu quadro clínico. Em casa, ele alternava estados de lucidez e inconsciência parcial, não conseguia se alimentar e sofria dores horríveis.
Somente no último final de semana a família conseguiu que o mesmo pronto-socorro o encaminhasse à Santa Casa, para fazer uma tomografia computadorizada. Não obtivemos cópia do exame no hospital, mas minha sobrinha foi tranquilizada por um neurologista, que afirmou não ter sido afetada nenhuma função cerebral. De volta a Jaçanã, após muita insistência, conseguimos sua internação no Hospital São Luís Gonzaga.
Na segunda-feira, 12, veio a falecer. Autopsiado, o laudo do Instituto Médico Legal indicou como causa mortis "traumatismo crânioencefálico".
Fazemos o relato deste episódio, testemunhado por diversas pessoas, para denunciar não apenas o lamentável estado a que chegou o atendimento médico na quinta maior cidade do mundo, mas também a empulhação de que é vítima a população, submetida a uma campanha enganosa e manipuladora, alardeando eficiência de serviço que a municipalidade paulistana em hipótese alguma oferece.
Nossa família vai acionar o hospital, o pronto-socorro e o Conar, para que esses comerciais indecentes saiam do ar.

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