São Paulo, terça-feira, 20 de dezembro de 1994
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A falsa baiana

ROBERTO CAMPOS

A legislação trabalhista brasileira, provavelmente a mais complicada do mundo, e certamente a pior, é a nossa falsa baiana institucional: faz de conta que é, mas não é. Entendamo-nos. Para algo ela serve: muita gente vive às custas dela, inclusive um aparato sindical fascista –criado sob a inspiração da Carta del Lavoro de Mussolini, que estaria perto hoje dos 70 anos– com sindicato único e obrigatório, imposto sindical e mais uma contribuição forçada, que, apesar de eliminada, em princípio, pela Constituição de 88, continua bem, obrigado. E esta, na sua alegre irresponsabilidade, deu direito de greve irrestrito a todo o setor público –quando a greve é, por princípio, um instrumento de pressão dentro de uma relação contratual de patrão e empregado, não entre uma categoria e a sociedade como um todo– para castigar os pobres e inocentes até que o governo resolve ceder. E, já que estamos abrindo a porta do museu das anomalias, temos os piquetes violentos, que ocupam edifícios, depredam e atacam os que querem trabalhar –comportamento que, nos países democráticos e civilizados, é crime sério.
Quando criou o sistema, Getúlio Vargas (então ditador) tinha em mente dois objetivos: dispor de um instrumento de controle de uma força política que começava a surgir, cooptando as suas lideranças pelo peleguismo; e satisfazer, com o salário mínimo legal, a carteira de trabalho, e o resto da parafernália trabalhista, a força de trabalho urbana, sobretudo da indústria e dos serviços públicos.
Clientela pequena, aliás: em 1940, a indústria era 11% da População Economicamente Ativa ocupada, e somada à construção, comércio, transportes, comunicações e serviços de utilidade pública, não chegava a 22% da PEA. A população urbana não ia além de 31%.
Instituiu-se, assim, um sistema pesado e inflexível que, dentro da velha tradição patrimonialista e juridicamente formalista, passou a ser de predomínio da legislação sobre o contrato e do aparato da Justiça Trabalhista sobre a negociação entre as partes.
Até a produtividade se tornou um adicional fixado arbitrariamente pelas autoridades, ao invés de ser um dado econômico (o aumento de produção por hora trabalhada) –o mais importante fator na determinação dos salários reais. Nos anos 79-90 foi, na Inglaterra e no Japão, superior a 4% ao ano, nos Estados Unidos e na França, superior a 3%, e na Alemanha e na Noruega, de mais de 2%.
Sobre esta base de garantismo legal (conforme a expressão de J. Pastore, que aponta, caso único no mundo, a Justiça do Trabalho, no Brasil, pode intervir tanto nas disputas jurídicas, quanto nas econômicas), começaram a piramidar-se encargos e mais encargos, com a mais supreendente leviandade.
Os encargos compulsórios somam, hoje, de cerca de 100% a 125% sobre os salários! Na Europa, onde os avanços sociais não precisam ser enfatizados, o salário direto fica entre 2/3 e 3/4 do total da folha. Alguns economistas procuram deduzir do total os encargos que correspondem a tempo não trabalhado (algo em torno de 50% do total, no setor da indústria), sob a alegação de que se trata de formas de remuneração do trabalhador. De certo modo, assim é. Mas, de qualquer forma, apresenta três defeitos fatais: é rígida, imposta e não negociável; é paternalística e faz o empregador hesitar ainda mais em contratar formalmente um novo trabalhador.
O resultado são dois males sérios: a alta rotatividade da mão-de-obra (que parece ser superior a 30% ao ano, embora os critérios sejam polêmicos e os dados precários, quando na Europa e nos Estados Unidos anda por 20%) e o enorme coeficiente de informalidade da ocupação, também mal conhecido, mas possivelmente superior a 50%. Não perdendo a oportunidade de fazer exatamente a coisa errada, a CUT, usando a rotatividade com alarmismo, fez força para a inclusão da estabilidade na Constituição de 88. Seria uma perfeita receita para reduzir ao máximo as oportunidades de emprego formal.
Em todos os países industrializados, a tendência predominante tem sido de flexibilizar ao máximo a remuneração e os encargos trabalhistas, porque, como um mínimo de conhecimento econômico mostra, esse é o único meio eficaz para otimizar a quantidade de emprego. O que, aliás, não exclui as vantagens negociadas nos contratos coletivos de trabalho, muito usados nesses países. Mas contrato coletivo e o sistema brasileiro são logicamente incompatíveis.
Pense-se, por exemplo, que corriam na nossa Justiça do Trabalho, este ano, cerca de 2 milhões de causas, enquanto que no Japão (onde não existe essa justiça, mas só tribunais comuns) não passavam de mil as disputas ajuizadas.
Nossa opulenta tradição colonial-patrimonialista e pelego-corporativista não tem a menor noção da importância das expectativas dos agentes econômicos, que é o que, em última análise, determina o rumo das economias de mercado. Acredita que as coisas se resolvem com algum burocrata ou juiz baixando uma norma ou sentença. Mas salário real, da mesma forma que renda real, só podem ser criados pela produção e a rigidez extraordinariamente irracional a que foi levado o país, nessa matéria, reduz as possibilidades de crescimento econômico e de geração de emprego. Em última análise, quem acaba pagando por tudo isso é o próprio trabalhador. Além disso, no Brasil, a excessiva oferta de mão-de-obra subqualificada tende a empurrar para baixo o salário. A progressiva erosão do salário mínimo a longo termo tem refletido muito esse fator.
Nem seria preciso lembrar, por trivial, que o grande instrumento de melhora da condição do trabalhador é a qualificação, que depende, sobretudo, da educação primária. E sob este ponto de vista, a situação é trágica. Não há outro termo. Na porcentagem de alunos que chegam ao quarto ano, o Brasil tem, nas estatísticas do Banco Mundial, de longe, uma das piores colocações do mundo e bastante baixa a dos matriculados no secundário. Os Tigres Asiáticos, que há uns 30 anos estavam bem abaixo de nós em renda per capita e desenvolvimento industrial, deixaram-nos para trás com uma receita simplíssima: competitividade e educação. E isso levou a uma distribuição de renda bem menos desigual do que a nossa.
Os países altamente industrializados não têm tido dúvidas em reduzir alguns dos encargos trabalhistas legais, apesar de bem mais flexíveis do que os nossos. Outros assuntos correlatos, que para nós têm sido tabus, como o aumento do limite de idade para aposentadoria, são estudados com seriedade. O sistema atual precisa de ser mudado, antes de mais nada em benefício dos próprios trabalhadores.

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