São Paulo, terça-feira, 20 de dezembro de 1994
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O déspota esclarecido

RICARDO SEITENFUS
"AQUELE QUE TUDO PODE, TUDO DEVE TEMER." (CORNEILLE)

As relações do Brasil com o exterior são marcadas pela excessiva centralização, o que deixa imensa margem de discricionariedade aos privilegiados que podem sobre elas opinar e decidir. A concentração de poder foi justificada, ao longo do tempo, pelo segredo de Estado e pelo tecnicismo.
A grande expectativa de mudança que advém da eleição do professor Fernando Henrique Cardoso é justificável. Passamos do provinciano Itamar Franco, desinteressado pela política externa, a um cidadão do mundo.
Contudo, ao que parece, teremos no futuro novas justificativas para o velho mal. O presidente eleito argumenta que "no mundo atual, os presidentes, chefes de Estado, fazem eles próprios a política internacional... e eu estou preparado para isso" (Folha, 7/10/94).
Isto significa a minimização do papel do Itamaraty, que hoje não somente executa, mas formula a política externa e, nas palavras do próprio FHC, passará a desempenhar um importante papel de auxílio. O formulador é o presidente; conserva-se o tecnicismo, mas o poder central troca de mãos.
A concepção expressa pelo novo titular do Executivo deve ser, porém, objeto de outros amplos questionamentos.
Em primeiro lugar, a comparação do Brasil com o mundo deve resguardar critérios mínimos. Nas democracias ocidentais que podem ser tomadas como parâmetros, o Legislativo interfere de maneira decisiva na formulação e no controle da política externa.
O presidente refere a atuação parlamentar brasileira como consensual, "o que não quer dizer que ela não seja dinâmica". Ora, os estudos provenientes da academia já provaram que o Congresso Nacional é um mero ratificador de posições do Executivo, seja por ignorância ou por barganha política.
No caso do Brasil, os partidos políticos, em sua superficialidade programática, convencidos de que as questões internas lhe trarão mais votos, não conseguem perceber a íntima vinculação entre o interno e o externo, entre o doméstico e o internacional.
Fernando Henrique afirma ainda que a sociedade civil brasileira "precisa respaldar mais a política internacional", mesmo confessando que será o soberano na sua formulação.
Suspeito que, através do culto à personalidade, da falácia da autoridade acadêmica e do séquito de intelectuais dispostos a multiplicar a sustentação pública de suas atitudes, o novo presidente pretende provocar na sociedade, através da obsequiosa anuência, uma nefasta modalidade de respaldo.
Enquanto países como a Alemanha, os Estados Unidos, a França e a Inglaterra dispõem de conselhos de política externa, integrados por membros independentes, originários da sociedade civil, Fernando Henrique preocupou-se em criar, quando foi ministro das Relações Exteriores, um Conselho Assessor Empresarial. Todavia, as relações internacionais em muito excedem a condição de meio para ampliar os lucros de setores privados, por vezes até em detrimento do interesse público.
Nosso futuro presidente parece estar mais afeito ao "tour-de-force" do presidencialismo do que preocupado em discutir abertamente os desafios da atuação externa do Brasil. "Líder político não se omite", diz ele.
O controle parlamentar, uma opinião pública bem-informada e atuante, a participação dos Estados-membros da Federação, um claro interesse dos meios de comunicação, mecanismos de participação da sociedade civil e do meio acadêmico; estas são as providências objetivas que um governo democrata deve, de imediato, tomar. Caso contrário, a ação do presidente da República expressará, não a vontade nacional, mas a percepção pessoal de FHC.
Sobre essa percepção, recordo que, quando chanceler, o presidente eleito não implementou mudanças substantivas, ainda mais se considerarmos sua origem, a universidade, cuja visão crítica imporia uma revolução no Itamaraty.
Há indicativos enigmáticos, como a adoção do estilo "low profile" quanto ao encaminhamento da reivindicação de uma cadeira de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU ou a declarada intenção de criar e trazer para o Brasil, o Parlamento do Mercosul.
Mas o que se espera de um governo social-democrata em política externa? No mínimo, a democratização dos temas dos quais os cidadãos foram até o momento absolutamente apartados.
Não posso deixar de lembrar, aqui, da expressão de Hambloch: "Sua majestade, o presidente", quando ressaltava, na década de 30, a excessiva concentração de poderes do presidencialismo brasileiro. O mandato eletivo confere força ao presidente para que implemente as decisões, mas pressupõe que as instituições e a sociedade concorram para o processo decisional.
A qualidade de conhecer o mundo não deve obscurecer a evidência de que há muitas maneiras de compreendê-lo e de relacionar-se com ele. O Brasil não deve ater-se a apenas uma delas. Esta pertinente lição o –hoje com um ar quase imperial– acadêmico Fernando Henrique não aprendeu.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 46, doutor em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, é coordenador do curso de mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor dos livros "Para uma Nova Política Externa Brasileira" e "Haiti, a Soberania dos Ditadores".

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