São Paulo, sábado, 24 de dezembro de 1994
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Ovídio foi o Disney de 2.000 anos atrás

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O livro que mais me faz pensar na festa do Natal, nessa exaltação do nascimento ou renascimento do mundo, foi na verdade escrito por um autor que morreu quando Jesus Cristo tinha 17 anos e que (como, aliás, o resto do mundo do seu tempo) não tomara o menor conhecimento do nascimento do dito Jesus.
O autor, poeta, se chamou Ovídio, e seu livro a meu ver tão natalino é um longo poema, "As Metamorfoses". A grande descoberta de Ovídio é que o homem adulto sempre guarda em si muito da criança que foi, e essa descoberta o levou a contar a história do mundo valendo-se de lendas e ocorrências as mais insólitas e maravilhosas.
Fico atônito ao ler, como li antes de começar este artigo, opiniões modernas alegando que no dito poema importam menos as metamorfoses propriamente ditas do que o tema da paixão, das paixões humanas. Ora, façam-me o favor. Todo livro que se preza é sobre a paixão, ou paixões humanas, enquanto nenhum outro lida mais com transformações do que o de Ovídio. A menos que seja "A Origem das Espécies", de Darwin.
E o gênio de Ovídio é tão inquietante que em certos versos das "Metamorfoses" ele parece estar plagiando, com cerca de milênio e meio de antecedência, observações do jovem Darwin quando navegava pelas costas do Brasil e da Argentina a bordo do "Beagle". Ouçam Ovídio: "Eu diria que nada dura muito tempo sob a mesma forma. Já vi a terra sólida transformada em mar. Conchas jazem muito longe das ondas do mar, e antigas âncoras têm sido encontradas no cume das montanhas."
Mas fiquemos com nosso Ovídio festeiro, natalino, que nos faz pensar mais em Walt Disney que em Charles Darwin. Ovídio inventou a ficção ininterrupta, destinada a ser lida, ou vista, de uma vez só, como uma película cinematográfica. O mundo começa, naturalmente, com sua própria criação e big-bang e acaba, no poema, dentro da mais perfeita ordem, tal como implantada pelo imperador Augusto no Império Romano: "Júpiter controla os palácios do céu... A Terra está debaixo do poder de Augusto. Cada um deles é o senhor."
Não faltará, neste ponto, quem me lembre que Ovídio morreu exilado pelo referido imperador Augusto. Foi desterrado para o distante porto de Tomis, no mar Negro. Poeta cortesão e ousado, ele escrevera seu famoso poema "A Arte de Amar", assim como escrevera, a título de antídoto para o amor, dois pequenos livros, "Os Remédios do Amor" e "Os Cosméticos para o Rosto da Mulher", que a Nova Alexandria acaba de lançar em bem-vinda edição bilíngue.
Até hoje ignoram-se as razões para o severo banimento de Ovídio. O reinado de Augusto era moralista, e "A Arte de Amar" chocara os bem-pensantes da época. Mas houve algo mais. Durante algum tempo trabalhou-se a hipótese de uma filha de Augusto estar envolvida em escândalos ou indiscrições ovidianas. Seja como for, nosso desventurado poeta morreu exilado, chateado, tão triste que escreveu um poema inteiro chamado "Tristia".
Nesse negro mar de melancolia morreu, pouco antes de começar no mundo civilizado o reinado de Jesus Cristo, o novo Deus, ou Filho de Deus, que ia mudar a história e roubá-la do domínio dos imperadores. Roma continuava, é verdade, mas metamorfoseada em Roma papal, cristã.
Com essa metamorfose, dirão os céticos, Ovídio não contava, mas não esqueçamos, em primeiro lugar, que ele contava com incessantes metamorfoses e, em segundo lugar, que a vinda inesperada de Jesus Cristo iria instituir o Natal, a festa da grande metamorfose de um menino, filho de homem e mulher, em Deus.
Aliás, os romanos naqueles dias andaram farejando algo novo nos ares do império. Virgílio, nesse tempo, escreveu aquela famosa "Quarta Écloga", em que até uma Virgem é mencionada, além do Menino que surgirá entre os deuses e os heróis. Pode-se, como tem sido feito, "historicizar" em termos puramente romanos a "Quarta Écloga". Mas que ela parece estar falando em outra coisa parece.
Não percamos, porém, de vista "As Metamorfoses", que não só passaram a exercer, desde sua publicação, uma incessante influência sobre a literatura ocidental, como passaram a se ajustar como uma luva a mil situações da vida.
Pode haver nada mais parecido com a história de Fernando Collor quando foi eleito do que a do rei Midas, da Frígia? Midas já era rei, tinha seu belo futuro assegurado, mas, quando Baco lhe perguntou que mais queria da vida, respondeu, cego de cobiça: "Quero que vire ouro tudo aquilo em que minhas mãos tocarem."
O que aconteceu todo o mundo sabe, mesmo quem jamais ouviu falar em Ovídio. Midas não conseguiu mais nem sequer comer, pois tanto a maçã que acabava de colher como a asa de faisão assado que ia morder viravam em sua mão duro ouro.
A diferença entre as duas histórias é que Midas precisou pedir a Baco que tivesse pena dele e o livrasse do dom ambíguo de monetizar tudo ao seu redor, enquanto Collor, pilhado no ato de transformar em vil metal privado a seiva do país, conseguiu pôr a culpa de tudo no seu próprio Baco, isto é, PC Farias, que foi para a cadeia no lugar dele.
Aliás, nas "Metamorfoses", Midas não se emenda e, na asneira que faz a seguir, é condenado a ter para sempre a cabeça ornada de orelhas de burro. Midas pícaro, malandro, Collor de pronto transferiu as orelhas de asno para a cabeça dos juízes encarregados de verificar quem roubara o ouro que ele gastou. Os juízes –elementar, meu caro Watson– concluíram que tinha sido o mordomo.

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