São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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A difícil convivência com capitais externos

LUCIANO COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Após um longo período de marginalização –causado principalmente pela crise da dívida– as economias em desenvolvimento voltaram, nos últimos três anos, a ser objeto de interesse dos capitais estrangeiros.
Com efeito, após captar muito pouco capital externo no período 1982-1989, os países em desenvolvimento receberam abundantes influxos de capitais numa proporção média de 2,5% dos seus PIBs no período recente (1990-1994).
US$ 400 bilhões afluíram a estes países nos últimos quatro anos (cerca de US$ 96 bilhões/ano), sob a forma de investimentos em Bolsas de Valores, aplicações financeiras em títulos, inversões diretas e empréstimos aos respectivos setores públicos.
No caso da América Latina, essa reversão foi ainda mais marcante, pois durante a etapa 1982-1989 a região, ao invés de receber, havia transferido anualmente recursos para os credores e investidores numa proporção média de 2,4% do seu PIB. Ao contrário, no período recente (1990-1994), recebeu influxos anuais equivalentes a 3% do PIB.
Essa verdadeira avalanche de capitais em direção aos países em desenvolvimento tem sido explicada pelos seguintes fatores conjunturais:
a) pela lassidão das políticas monetárias nos países desenvolvidos que, com exceção da Alemanha, praticaram taxas de juros muito baixas entre 1990 e início de 1994;
b) pela busca de alternativas de retorno muito mais elevados, oferecidas pelos países em desenvolvimento (juros dos respectivos títulos públicos e privados e expectativas de ganhos de capital nas Bolsas de Valores "emergentes");
c) pelas decisões de investir diretamente nos países em desenvolvimento, para expandir negócios ou adquirir ativos produtivos, aproveitando as atraentes oportunidades criadas pelos respectivos programas de privatização.
Influxos de capitais são em geral positivos para economias em desenvolvimento, mas em doses excessivas tornam-se negativos. Com efeito, as seguintes consequências têm sido destacadas:
1) os ingressos de capitais permitiram acomodar déficits em conta corrente de magnitudes crescentes (os países em desenvolvimento passaram de posição deficitária média anual de US$ 19 bilhões na segunda metade dos anos 80 para um nível de US$ 94 bilhões/ano entre 1991-1994);
2) esses déficits elevados em conta corrente não seriam contraproducentes se correspondessem à absorção de investimentos produtivos, mas adquirem caráter deletério se o ingresso de capitais financia primordialmente o incremento do consumo (a balança de comércio dos países em desenvolvimento passou de uma posição superavitária média anual de US$ 27 bilhões entre 1986-1990 para uma posição anual deficitária de US$ 23 bilhões entre 1991-1994).
Na grande maioria dos países, este déficit referiu-se à importação de bens de consumo, sem que ocorresse uma elevação significativa da taxa de investimento agregado. No caso dos países da América Latina, a proporção dos investimentos sobre o PIB permaneceu praticamente constante, enquanto os gastos de consumo subiram 2,5% da renda nacional;
3) os influxos maciços de capitais descontrolam a oferta monetária e provocam fortes valorizações dos ativos reais e financeiros nos países receptores (preços dos imóveis, ações, títulos), sinalizando pressões inflacionárias;
4) os ingressos em grande escala de capitais externos inundam o mercado de divisas e provocam uma apreciação da taxa real de câmbio;
5) finalmente, os países cujos déficits em conta corrente são financiados pela entrada de capitais tornam-se vulneráveis à reversão destes fluxos. Nesta circunstância, uma reversão abrupta criaria violentas tensões inflacionárias, forte depreciação cambial e risco de graves falências financeiras.
Até mesmo as instituições mais ortodoxas, como o Fundo Monetário Internacional, passaram a se preocupar com os riscos decorrentes dos influxos excessivos de capitais (1).
O mais recente relatório anual do Fundo (de outubro p.p.), adverte na pág. 57: "... a preocupação com influxos maciços de capitais inclui o impacto sobre as condições monetárias, a possibilidade de intensificação das pressões inflacionárias e de uma apreciação excessiva da taxa real de câmbio, o que tende a reduzir a competitividade externa e a exacerbar os déficits em conta corrente. Sobretudo, qualquer reversão súbita desses influxos colocaria em risco a viabilidade externa e a estabilidade doméstica dos mercados financeiros. A gravidade desses riscos aumenta com a proporção de capitais de curto prazo e em países onde as condições econômicas fundamentais não estão devidamente equacionadas" (2).
O exemplo mexicano, nesta semana que passou, não poderia ser mais eloquente.
O que poderia causar uma súbita e perigosa reversão do movimento de capitais?
O relatório do FMI pondera que pode surgir nos países desenvolvidos (especialmente nos EUA) uma forte inconsistência entre a política fiscal (déficits elevados) e a política monetária, o que, associado a expectativas altistas de inflação, tenderia a provocar uma subida exagerada das taxas de juros nos mercados financeiros centrais, atraindo os capitais que hoje financiam os déficits dos países em desenvolvimento.
Esta possibilidade é levada a sério pelo FMI, ao ponto de determinar uma alternativa pessimista para o cenário global.
Os juros muito elevados abreviariam a recuperação da economia mundial e provocariam uma dramática crise dos países em desenvolvimento, particularmente naqueles que dependem de entrada de capitais externos.
Isso já não é mais apenas um cenário. A subida recente da taxa de juros nos EUA colocou o México, já vulnerável, numa situação periclitante, obrigando as autoridades econômicas a admitir uma forte maxidesvalorização do peso, cujas consequências ainda estão por vir.
Ainda é difícil prever a dimensão do estrago, cuja digestão dependerá do apoio que o Federal Reserve americano possa dispensar ao BC mexicano.
Tensões inflacionárias poderosas serão deflagradas, em virtude do elevado coeficiente de importação, colocando em risco o anunciado congelamento de preços e salários por 60 dias.
Se a cadeia de efeitos desestabilizadores não for brecada por intervenções, a Argentina será a próxima vítima.
Mas, ainda que as sequelas da crise mexicana venham a ser parcialmente neutralizadas, será inevitável uma interrupção por vários meses dos influxos de capitais para a América Latina.
Para o Brasil, que inicia um novo governo, cercado de grandes esperanças e otimismo, esta interrupção temporária dos influxos de capitais livra a nova equipe econômica do dilema imediato de como evitar pressões adicionais de valorização do real sem desequilibrar as condições fiscais-monetárias internas.
É relevante, porém, aprender a lição e preparar alternativas para o futuro.
Passada a tempestade, os influxos poderão voltar, ainda que em menor escala, uma vez que o Brasil é hoje visto como uma área sub-representada nas carteiras de aplicações dos bancos e investidores internacionais.
Até pouco tempo atrás, antes da implosão mexicana, importantes instituições bancárias recomendavam a ampliação do peso de papéis brasileiros em seus ativos.
Agora ficou insofismável: não é possível ajustar-se passivamente aos influxos de capitais e aceitar déficits elevados em conta corrente (como desejava parte da atual equipe econômica) sem correr graves riscos.
É indispensável imaginar formas de corrigir a defasagem da taxa de câmbio e evitar sua apreciação adicional.
Num próximo artigo exploraremos alternativas de política nesta direção, compatíveis com o Plano Real e consistentes com a retomada organizada do desenvolvimento.

(1) Vide "Recent Experiences with Surges in Capital Inflows", Kahn, R. et alli, I.M.F., dezembro, 1993.
(2) Vide "World Economic Outlook", I.M.F., outubro, 1994.

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