São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Relação fisco e contribuinte deve mudar

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma amiga que retornou ao país, após um curso no exterior na área de administração tributária, fala-me da mudança de tratamento que o Serviço de Rendas Internas dos Estados Unidos e a Receita do Canadá, órgãos cujo correspondente aqui é a Secretaria da Receita Federal, estão adotando na denominação do contribuinte.
Lá, estão abandonando a designação tradicional de "taxpayer" (literalmente, pagador de imposto) para adota "customer" (cliente).
Não se trata de uma mera alteração terminológica. Em realidade, há toda uma mudança no relacionamento fisco versus contribuinte. Historicamente, o contribuinte é quem paga os tributos. A sua situação com o fisco tem sido encarada como a da pessoa sujeita a obrigações. A principal é a de pagar os impostos. Vista, no ponto de vista do fisco, a relação é de poder, de exigir o imposto devido na forma da lei. Do ponto de vista do contribuinte, a relação é de sujeição, de submissão.
Impera, nessa concepção, a força e o predomínio da autoridade sobre os pobres mortais contribuintes. Estes muitas vezes têm o seu sono perturbado por pesadelos, imaginando-se presos por sonegação de impostos ou sofrendo os rigores da lei, tendo de vender seu patrimônio para saldar dívidas tributárias.
Embora o descrito constitua fatos corriqueiros na vida das pessoas, essa concepção de predomínio do fisco é frágil e não corresponde à realidade.
Nos sistemas tributários modernos, a dependência da administração tributária de uma série de comportamentos dos contribuintes é total. O papel do contribuinte, nos atualmente chamados impostos declaratórios, é abrangente e completo. Vale dizer, o contribuinte não somente paga o tributo espontaneamente, mas registra-o nos livros, apresenta declaração ao fisco, presta informações generalizadas.
O sonho das administrações tributárias é o de que ocorra o cumprimento espontâneo das obrigações fiscais, principalmente a de pagar o imposto. Há uma absoluta impossibilidade material de o fisco determinar, por si só, sem graus variáveis de colaboração do contribuinte, o que cada um deve, quando o universo de contribuintes alcança alguns milhões de pessoas.
Para que haja essa espontaneidade ou voluntariedade é imprescindível um bom relacionamento do fisco com os contribuintes.
Alguns fatores que influem nesse relacionamento são externos à administração tributária. Por exemplo, a carga tributária brutal, iníqua e desigual existente, tanto para as empresas quanto para as pessoas naturais, configura elemento decisivo a dificultar o pagamento correto do imposto e, em certos casos, constitui poderoso indutor à evasão ou à resistência fiscal.
A correção dessa terrível anomalia é incumbência do Executivo e do Legislativo, mas, objetivamente, só será corrigida com formação consistente e poderosa da opinião pública, principalmente através das variadas organizações da sociedade civil.
Alguns acontecimentos recentes, como o "impeachment" do presidente Collor, a reação contra os desmandos e a corrupção da Comissão de Orçamento, tiveram um resultado de favorável apuração de responsabilidade, em face do clamor organizado da sociedade civil.
Por outro lado, a letargia da opinião pública, sua inércia, possibilitaram um vazio, uma descompressão em que velhos hábitos e preconceitos voltaram à tona e encontraram o ambiente propício para prosperar.
É o caso da absolvição do presidente Collor e de PC Farias do crime de corrupção passiva. Sedimentou-se na população a crença de que a lei penal aplica-se apenas às minorias desprivilegiadas. Gente pobre e humilde, independente da cor, é quem sofre a eficácia da punição penal. Ricos, poderosos, influentes, em suma, "gente que tem berço", jamais será forçada a trocar o berço pelas grades.
Num Estado moderno que se quer, pela vontade do povo, democrático, a igualdade de tratamento é ponto fundamental a ser respeitado e praticado indistintamente.
Daí a importância de que a administração trate decentemente o cidadão, fornecendo as informações solicitadas e dando-lhe o tratamento típico das democracias, em que ele não é um mero objeto na paisagem do Estado, mas um sujeito de direitos, origem do poder existente e, portanto, uma pessoa a ser respeitada e tratada com lealdade, atenção e eficácia.
Os detentores do poder, ao contrário do que pensam e agem, na República, não são donos do poder. São apenas mandatários do povo que lá os colocou para dirigir a nação. Não sendo proprietários do poder, pois a coisa é pública, são obrigados a prestar contas.
A corrupção governamental, os gastos não-prioritários, esbanjadores, concentradores de renda, o governo direcionado aos interesses de grupos políticos minoritários e clientelísticos, tudo isso conspira para que a população resista ao pagamento dos impostos, pois não se sente identificada com a aplicação dos recursos pelo governo.
O governo termina por carecer de legitimação do povo. Isola-se na apropriação dos benefícios por minorias privilegiadas.
A Secretaria da Receita Federal, na sua escassez típica de recursos, tem dado um exemplo de modernidade no tratamento do contribuinte. Se não lhe altera a designação, tarefa ainda difícil, passou a tratá-lo com melhor nível de qualidade, atenção e profundidade.
Criou "na marra", como se diz nos ambientes de "macho", os Centros de Atendimento ao Contribuinte, em cada delegacia, de sorte que a pessoa que solicita informações tem com rapidez a resposta correta. A tempo e à hora.
Não é o CAC mero lugar de recepção, mas órgão que soluciona as questões apresentadas ou lhes dá o encaminhamento correto, com as instruções adequadas e, na maioria das vezes, fornecendo roteiros e os formulários adequados às pretensões do contribuinte. É ainda um trabalho em desenvolvimento.
Mas é uma mudança significativa da mentalidade burocrática. A concepção que se inicia a implantar é a de que o importante é o contribuinte, vale dizer, que é uma pessoa a ser cativada e prestigiada, mediante um bom atendimento.
É o início de um processo significativo de mudança da concepção burocrática e institucional.
Espera-se que o ministro Bresser Pereira, futuro secretário da Administração Federal, com o seu conhecimento da burocracia e experiência administrativa, consiga expandir essa nova visão do relacionamento da administração pública com o cidadão, de sorte que o Estado brasileiro assuma o seu papel institucional de prestador de serviços dotados de qualidade, para que se promova efetivamente o bem comum.
E que da reforma do Estado resulte o seu real aperfeiçoamento, enterrando a situação que possibilitou o lema que o define, com propriedade, em face de sua atuação até hoje, de instrumento para a "privatização dos benefícios e socialização dos prejuízos".
É tempo de mudar, porque é necessário mudar.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília, advogado e ex-secretário da Receita Federal.

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