São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Cultura, mecenato e economia moderna

ÁLVARO ANTÔNIO ZINI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Deus é mais um artista. Inventou a girafa, o elefante e o gato. Ele não tem um estilo pronto. Apenas segue em frente experimentando com as coisas."
Pablo Picasso
Como hoje é Natal, vamos poupar o leitor de uma coluna mais pesada em finanças e tratar de cultura.
O próximo governo de Fernando Henrique Cardoso e as expectativas favoráveis ao desenvolvimento do país trazem novo alento à discussão cultural. Depois de 15 anos de crise, a nação se dá conta de que as diversas formas de criação merecem mais apoio.
Isso é positivo, pois no capitalismo pós-industrial, da produção global e da cultura sem fronteiras, as faíscas de luz geradas pelo intelecto humano têm um valor econômico poderoso. A criatividade e a capacidade de comunicar as idéias são hoje um quinto fator de produção (ao lado do capital, trabalho, terra e tecnologia).
O problema de se deixar a produção da cultura e da ciência para ser comandada apenas pelo mercado é que há enormes externalidades envolvidas tanto na criação quanto na apropriação dos benefícios. E o mercado não é bem aparelhado para lidar com esses aspectos.
Vejamos um exemplo. Quando Péricles resolveu construir os magníficos edifícios públicos de Atenas (450 AC), usando parte dos recursos da Liga Délica, houve quem o acusasse de jogar dinheiro fora. No entanto, esses investimentos, aliados ao vigor da filosofia, medicina, teatro, etc. permitiram que a Grécia se tornasse o centro das viagens e da educação do século 4º AC ao século 5º DC.
Se fosse feito um cálculo do dinheiro gasto e do seu rendimento ao longo de todo esse tempo, dificilmente haveria outro projeto com taxa de retorno tão elevada. Mas esse exemplo deixa entrever também as dificuldades com os investimentos culturais.
Primeiro, apenas uma pequena parte dos benefícios são capturados diretamente pelo produtor do bem. Isto é, se o bem cultural ou científico exige um investimento de 100 e gera ao longo do tempo um benefício de 200, mas seu produtor somente consegue obter 50 de retorno pessoal, do ponto de vista privado esse investimento não paga o custo. Embora para a coletividade esse dinheiro tenha sido bem gasto.
Segundo, geralmente é preciso passar um período de tempo longo para que todos os benefícios da invenção sejam obtidos. E muitas vezes há também um bom período de tempo para a gestação dos resultados.
Terceiro, há uma grande sinergia nos centros criativos; isto é, existe muito reforço circular na produção desses bens. Assim, na época em que se atravessa um período muito fértil na produção, digamos, da música, normalmente há diversas outras áreas que também estão bastante ativas e ocorre uma fecundação mútua.
Quando os Médicis e os Pitis, em Florença, patrocinaram desde a tradução dos clássicos gregos até a arquitetura de Brunelleschi, passando por Dante Aliguieri, Da Vinci, Botticelli e Michelangelo, fomentaram uma fecunda veia criativa que iria gerar frutos por muito tempo.
Mas a sinergia também é negativa. Quando se destroça o processo de fecundação intergrupos e quando se cerceia as mentes independentes que seguem à frente da criação ou da reflexão, a perda coletiva é maior do que a perda do grupo diretamente atingido.
A dificuldade é que os fatores apontados reduzem, aos olhos do cálculo privado, os atrativos de se fazer investimentos em cultura (também em ciência). Isso porque é difícil ao investidor privado se apropriar de muitos dos benefícios gerados pelo bem.
Há duas formas de se apoiar essas áreas, além da cobrança de direitos autorais quando os benefícios são bem identificados; com fundos públicos e o mecenato.
Não há nenhum desdouro em receber o patronato privado. Quem estuda a história da cultura grega, aprende que todas as grandes obras do teatro grego, os esportes olímpicos e as outras festividades coletivas, todos eram patrocinados pelos cidadãos de maior posse.
Essa modalidade foi retomada nos Estados Unidos no século 19, estabelecendo-se uma vigorosa tradição de doações para universidades, grupos artísticos e causas filantrópicas. Megaempresários, como John Rockefeller, Andrew Carnegie e Henry Ford legaram milhões de dólares às fundações que constituíram.
Precisamos estimular essa filantropia no Brasil, como declara o novo ministro da Cultura, Francisco Weffort. No entanto, há algumas dificuldades conceituais que precisam ser vencidas.
Primeiro, a tradição de filantropia não pode ser associada exclusivamente à isenção de Imposto de Renda. Essa é uma idéia equivocada. Os grandes filantropos querem, antes de tudo, o reconhecimento e o prestígio social decorrente do ato.
As doações mais generosas são estimuladas quando o doador se identifica com a atividade beneficiada e pode interagir com a direção e os produtores culturais.
Toda universidade americana de porte tem uma grande biblioteca com o nome de um milionário que doou os recursos para a obra. Mas, no Brasil, se José X (personagem fictício) quiser doar uma biblioteca para a USP e ter seu nome colocado no prédio, provavelmente terá sua oferta rejeitada. Ainda mantemos um puritanismo meio estóico de que a academia não deve buscar esses recursos. É preciso mudar isso.
Segundo, que fique claro que ninguém deseja ver a repetição das tramóias que ocorreram sob o manto da "lei Sarney" (distribuição de benefícios para falsos grupos artísticos). Em parte, isso foi decorrente de se tratar o tema como uma questão fiscal.
Terceiro, para o patronato privado florescer há que se gerar uma nova mentalidade. É preciso fecundar uma cultura do mecenato. O futuro presidente, pessoa interessada no tema, deve estimular isso. À medida que os exemplos nessa área se generalizarem, o processo se reforça. E o sentido econômico dessas atividades é potencialmente imenso.
Temos uma forte energia criativa no Brasil. A música e o teatro são áreas de qualidade. Mas nossos livros são muito caros e nossas universidades são empobrecidas. Temos aí espaço e necessidade de experimentar mais.

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