São Paulo, terça-feira, 27 de dezembro de 1994
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Por que me ufano

ROBERTO CAMPOS

O Brasil, 10ª economia do mundo, está longe de esgotar o seu potencial de recursos
O respeitado economista Paul Krugman debateu, faz pouco, o possível paralelismo entre a sensacional expansão da economia soviética no pós-guerra e o desempenho, por enquanto assombroso dos "tigres asiáticos". Não sem uma ponta de saudades, esse debate lembra-nos o Brasil e outros tempos do pensamento econômico, nos anos 50. Era quando começávamos, com bastante fervor, o "desenvolvimento" –e, ainda inebriados com a explosão da teoria econômica dos anos 30 e 40, de Kalecki, Keynes, e tantos mais– projetávamos os nossos modelos Harrod-Domar, prevendo grandes esforços de formação de capital e belas taxas de crescimento para o país.
O leitor que não seja do ramo desculpará este instante de nostalgia de alguém de uma geração que pensava Brasil da manhã à noite. Mas já explico. E é uma questão pertinente –ano novo, governo novo– para quem quer pensar um pouco o que pode ser um futuro mais distante, para lá das "âncoras", das bandas da taxa de câmbio, das reformas fiscais e toda essa parafernália dos problemas imediatos com que temos convivido, sem sonhos, já faz tempo.
A ex-URSS assombrou o mundo, depois da Segunda Guerra, com taxas de crescimento altíssimas e espantosas realizações científicas e tecnológicas (mísseis, satélites artificiais, vôos espaciais). No fim dos anos 50, Nikita Kruschev falava que seu país ultrapassaria os Estados Unidos antes do fim do Segundo Plano Septenal (1972). O Congresso americano, devidamente assustado, promoveu inquéritos a respeito. Economistas ocidentais escreveram trabalhos sugerindo que o sistema soviético, embora pouco palatável sob o ponto de vista da democracia representativa, parecia mais eficiente para acelerar o crescimento econômico. Nos países menos desenvolvidos, as esquerdas não cabiam em si de convencimento.
Estudos posteriores mostrariam que não havia nada de milagroso nesse feito. Era só uma questão de enorme capacidade de sacrifício, investindo, ao invés de consumir, uma elevada proporção do Produto Interno. O crescimento soviético, pensam muitos especialistas, só foi rápido enquanto existia ampla disponibilidade de "insumos" (todos os fatores que entram no processo produtivo: mão-de-obra, recursos naturais etc.). Produzir é combinar fatores. Um deles, o capital, pode ser influenciado pela política econômica, mas as quantidades de outros só comportam aumentos lentos. A análise estatística da "produtividade total dos fatores" mostrou que o fenomenal crescimento soviético deveu-se principalmente à incorporação física de mais fatores (isto é, maior quantidade de "insumos"), com pouco aumento da produtividade. A desaceleração fatal viria mais tarde, nos anos 80.
Naturalmente, para produzir mais precisa-se ou de usar maior quantidade de insumos ou de melhorar os rendimentos destes. A novidade da colocação de Krugman consiste em concluir que o notável desempenho dos "tigres asiáticos" e outras economias do Extremo Oriente não é essencialmente distinto do fenômeno soviético, embora com as vantagens da economia de mercado.
A tese é exagerada –mas, por isso mesmo, provocante. Em realidade, não existem limites precisos que permitam dizer, na prática: "até este ponto, foi apenas o aumento da quantidade de insumos, de modo que o modelo soviético chega aqui e pára; daqui por diante, é só aumento da produtividade". A economia soviética começou a "ratear" bem antes de qualquer sinal de esgotamento da capacidade de mobilizar recursos adicionais. Isso por causa das ineficiências inerentes às economias centralmente planificadas, em especial o fato de que não existam os mecanismos de informação do mercado (preços relativos, taxas de juro etc.) e que a recompensa (ou punição) dos agentes econômicos, em vez de ser automática e imediata, como nos sistemas de mercado, era indireta, após longos e enrolados caminhos, afetados por considerações pessoais e políticas que nada tinham a ver com os objetivos ou a eficiência das atividades econômicas. Problemas que conhecemos bem de nossos dinossauros estatais e dispensam comentário.
O argumento, a propósito das economias asiáticas bem-sucedidas, reduz-se ao seguinte: já tendo elevado muito a taxa de participação e a qualificação da força de trabalho –ilustremos com o caso de Cingapura (feito notável, porque em 1966 metade dos trabalhadores não tinha educação formal e, em 1990, dois terços possuiam curso secundário completo), atingido níveis altíssimos de formação de capital (em torno de 40% do PIB), praticamente só lhes resta aumentar a produtividade, o que só se faz a taxas discretas, de 2% a 3% ao ano, digamos. A análise da produtividade total dos fatores indica que, durante estes anos de expansão, o aumento da produtividade foi pouco significativo.
Para mim, um teimoso teórico do "desenvolvimentismo" dos velhos tempos, esse debate provoca alegres cócegas no espírito. Nossa ótica de então era, de certo modo, a de um modelo de mobilização de recursos ainda inaproveitados, que só não diria "soviética" porque, na verdade, fazia parte do pensamento econômico ocidental, graças sobretudo à curiosa inventividade de W. Arthur Lewis, o jamaicano que depois ganharia o Prêmio Nobel. No modelo de Lewis, poder-se-ia alavancar o desenvolvimento pela transferência de mão-de-obra do setor de subsistência para o setor moderno, com salários apenas marginalmente superiores (o que pode lembrar os fluxos nordestinos para o Sudeste).
A satisfação provém do seguinte: o Brasil, a 10ª economia do mundo, está longe de esgotar o seu potencial de recursos e ficar reduzido apenas ao crescimento pelo aumento de produtividade. Tem todas as condições para um crescimento "soviético". E de que precisa? Precisa simplesmente elevar as taxas de formação de capital, que já foram de 25,4% do PIB em 1971/75 e em 1991/92 ficaram em 18,2%; fazer cessar a bacanal regulatória e controladora que dificulta a mobilização de recursos complementares e estrangula o emprego (no exclusivo benefício do corporativismo sindical-fascista); tirar o mais possível o Estado do lombo do produtor; acabar com o fiscalismo predatório e corrupto, com suas cinco dúzias de tributos e taxas; deixar o mercado fazer livremente a sua função de informar os preços relativos dos fatores e os capitais e a tecnologia irem para onde quiserem; aumentar a eficiência do governo, o que é sobretudo questão de cobrar resultados, e punir os que não cumpram; e, prioridade máxima, concentrar a ação do Estado onde é essencial, no campo social, e muito especialmente na educação. Apenas 40% dos operários brasileiros têm curso primário completo e só 15% podem ser considerados especializados. Na Coréia, em 1988, na faixa de idade correspondente, 87% estavam matriculados no secundário, mais do dobro dos 38% do Brasil. Não é de estranhar que esse país, que em 1960 era uma sombra perto do nosso, tivesse crescido a 7% per capita por ano (1965-89), e passasse a ter um PIB por habitante 75% superior ao brasileiro.
O Brasil já tem dimensões para economias de escala e conta com o mais precioso recurso, que falta desesperadamente nos cacos do ex-bloco socialista: a capacidade empresarial e gerencial, que não se improvisa, mesmo com boas escolas (que os países socialistas, verdade se diga, têm excelentes). É só tirar os entraves artificiais, inventados por políticos –e, como dizem os meus netos, "descolar" a energia.

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