São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Eta Ano Bom!

JOSUÉ MACHADO

O título de capa de "Veja" da semana de Natal foi o seguinte: "Eta Ano Bom". Para ser coerentemente otimista também na simpática forma popular, deveria ser "Eta Ano Bão", porque a interjeição "êta", com circunflexo, combina às maravilhas com "bão". Ou por que não "Eta Ano Bôm"? Eta-ferro! E faltou o óbvio e essencial ponto-de-exclamação, que a maioria dos jornalistas acha execrável. A menos que a intenção dos autores do título fosse irônica, porque para alguns não foi tão bom: Quércia, Lula, Brizola, PC e alguns mortos ilustres que o digam. Alguns, aliás, não poderão dizer nada.
O que importa de fato é a maioria, e nisso "Veja" está certa. O ano foi mesmo bom/ ótimo até para os mesmos. Na verdade um ano que serve de catapulta esperançosa para um período de aparente prosperidade, coisa indiscutivelmente boa. Só que a moçada de "Veja" se descontraiu com os eflúvios natalinos, esqueceu de duvidar e botou um acento popular no popular "eta" da capa. Teriam tentado evitar que os leitores confundissem a interjeição "eta", que exprime alegria, incitamento, surpresa, espanto, com seu "e" fechado mas sem acento, com o nome da sétima letra do alfabeto grego, "eta", com seu "e" aberto, também sem acento"? Mas não há tantos gregos assim por aqui e, pelo que se sabe, "Veja" vende pouco na Grécia. Infelizmente.
Por que não "Vêja"? Por que não "mêta" (de meter), "pêta" (mentira), "têta", "xêta" (provocação amorosa, gesto de beijo de longe)? Por que não "malêta", "mulêta", "mutrêta", "bolsêta" (bolsinha) e todas as outras sonoras palavras terminadas em "eta" com "e" fechado e acento tônico na penúltima sílaba? Nenhuma delas é acentuada. Por quê? Porque não é preciso. Porque são acentuados os oxítonos, isto é, os vocábulos que têm acento tônico na última sílaba, terminados em "a" (e também em "e" e "o"). Portanto acentua-se tafetá, paquetá, jacá, má, café, pé, filó, bocó, pó, e não "eta" e palavras similares com acento tônico na penúltima sílaba.
O "êta" de "Veja" foi distração, claro. Como sempre, coisa de computador rebelde ou anterior a 1971. Ou da confiança em dicionários distraídos, porque alguns acentuam eta indevidamente. Coisas da vida. Não há computador que trabalhe com a língua, no bom sentido, e não pise no tomate às vezes.
Todos sabemos que essa palavreta raramente escrita com seriedade carregou acento até 1971. Era uma das brindadas com o acento circunflexo diferencial, como todas as que tinham "e" ou "o" fechado, para não se confundirem com as homógrafas (palavras com a mesma grafia) que os têm abertos: acêrto/acerto, aquêle/aquele, côr/cor, êle/ele, êste/este, êta/eta e assim por diante.
Esse acento faleceu com o decreto 5.765, de 18/12/1971, quando era ministro da Educação do governo Médici o coronel Jarbas Passsarinho. Teriam deixado imperecíveis saudades? O acento diferencial não deixou. Mas dele ficaram discutíveis vestígios: côa, pára, pêlo, pélo, péla, pêra, péra; pêro, pôde, pôla, pôlo, pólo, pôr, têm, vêm são acentuadas. (Se tiver paciência, veja o significado dos homógrafos abaixo.)
A palavra fôrma (molde) não tem acento oficialmente, mas o bom Aurélio a acentuou por conta própria, justificando-se, para que não haja confusão com "forma" (formar), que também aparece em "de forma que".E virou norma. Quem pode –pode.
Ele pode e pôde. Eu, não. Não tenho fôrma para fazer dinheiro nem bom saldo bancário aqui ou alhures, de forma que não posso esquiar gostosinho em Aspen nestas férias.
Eita ano bom!
PS – Côa (coar), coa (com + a); pára (parar), para (Preposição); pêlo (cabelo), pelo (combinação da preposição antiga per + artigo lo), pélo/péla (pelar); pêra (fruto), pera (preposição antiga para), péra (pedra); pêro (fruto ou nome dado aos portugueses pelos índios), pero (mas, porém); pôde e pode; pôla (rebento, ramo novo de árvore), póla (surra), pola (por + la); pólo (jogo ou eixo), pôlo (falcão) e polo (forma antiga de pelo); pôr (verbo), por (preposição); têm (plural de ter), tem (singular); vêm (plural de vir), vem (singular). Algumas dessas palavras, que justificam os acentos diferenciais remanescentes, são muito usadas pelos marcianos, que aprenderam português com o rei trovador D. Dinis (1261-1325).
"Pera ver a rapariga
que paquerava na feira,
levou com a péra na briga
bem no meio da moleira."
Mais:
"Você vê aquele filhote de gavião, o pôlo, que bica pêras e pêros? Tem as penas tão arrepiadas pela póla que levou da mãe um campo de pólo que parecem pêlos."
Faz sentido, não?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

Texto Anterior: Rio Grande do Sul sofre racionamento de cerveja
Próximo Texto: Admirador de Pelé quer doar sua coleção para museu em Santos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.