São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 1994
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Mais realismo na dívida dos Estados

JOSÉ FERNANDO BOUCINHAS

Há uma profunda injustiça e um grave erro de avaliação embutidos nas críticas que se fazem, de forma apressada, ao endividamento dos Estados brasileiros, em especial quando se colocam como vilões aqueles que registram as maiores dívidas mobiliárias, sem que se examinem as causas desse endividamento elevado.
Sem qualquer caráter discriminatório ou bairrista, compete, como princípio de análise, relacionar os Estados que, a rigor, são sustentados pela União, o seja, aqueles em que as chamadas transferências federais têm maior peso na composição de suas respectivas receitas.
Há um grupo de Estados (11 pelo menos) que compõem suas receitas com percentuais entre 50% e 88% com recursos recebidos da União, sob a forma de transferências. Ou seja, este grupo só consegue de fato sustentar-se, do ponto de vista financeiro, com o beneplácito do apadrinhamento do governo federal.
Há um outro grupo significativo de unidades federativas dependentes entre 30% ou 40% dos recursos repassados pela União.
Fica fácil concluir, pois, que só têm problema de dívida mobiliária elevada os Estados para os quais são inexpressivas as transferências da União, face à arrecadação do ICMS, ou seja, Estados que não são sustentados pelo governo federal.
É lógico e compreensível que tenham recorrido à emissão de títulos para cobrir suas necessidades financeiras até quando isto foi possível. A Constituição de 1988 impede a emissão até 1999. Até porque, como unidades mais industrializadas, foram as que mais sentiram os efeitos da recessão.
Enquanto isso, amparados pela União e menos vulneráveis às pressões recessivas, vários Estados tiveram até suas folhas de pagamento cobertas pelos repasses federais. Estes não têm dívida alguma.
No caso de São Paulo, houve ainda uma forte expansão na demanda de serviços públicos, agudizada pela migração de grandes contingentes populacionais. O Estado supriu as demandas adicionais decorrentes deste fenômeno exclusivamente com recursos de sua própria arrecadação, já que não contou com qualquer apoio federal.
Os Estados não-dependentes, é bom que se destaque, sofrem um outro tipo de constrangimento em função dos termos leoninos impostos pela União na rolagem das suas dívidas, e no equacionamento das dívidas dos tesouros com os bancos estaduais.
Isto tudo ocorreu em um período, em que nada menos que oito ministros da Fazenda passaram pela pasta, relegando-se essas negociações à tecnoburocracia brasiliense, saudosista e neo-entusiasta do período autoritário. Estes esdrúxulos negociadores esmeraram-se em conduzir os entendimentos como se fossem os defensores do Santo Graal em luta encarniçada contra os representantes de Mefisto (os governados estaduais).
Conseguiram o prodígio de produzir "acordos" inexequíveis sem equacionar em definitivo as questões, o que se teria conseguido se conduzida com grandeza a negociação e visando atender os interesses nacionais.
Ao contrário, os negociadores procuraram, por todos os meios, colocar os Estados de joelhos, empurrando-lhes goela abaixo condições impraticáveis que já exigem uma imediata revisão para que não deteriorem ainda mais a situação dos Estados e não comprometam de forma irremediável as metas do Plano Real.
A recente decisão do Conselho Monetário Nacional de permitir a renegociação da dívida dos Estados, alongando-as por um período de 20 anos, atende as posturas defendidas há longa data pelo Estado de São Paulo. Pena que tenham sido implementadas tão tarde. Ou não será uma simples coincidência?
Não há pois do que se espantar com a dívida mobiliária dos Estados não-dependentes e não se poderá falar em sucesso de qualquer plano de estabilização da economia brasileira sem que se resolvam essas questões. Claro está que o corolário da autonomia financeira da unidade federativa é a necessidade de que ela disponha de todos os instrumentos para gerir suas finanças, inclusive a administração de sua dívida, como deve acontecer, aliás, em uma república federativa como o Brasil.
O equacionamento da questão das relações do governo federal com os Estados há que ocorrer com grandeza e sobretudo visão de futuro, alijando-se do processo os burocratas empedernidos, que mais merecem uma licença sabática de dois anos ou mais junto ao Brasil real, para a necessária e profilática desintoxicação. Até para que se possa ter, enfim, uma normalização no relacionamento entre União e os Estados.
Só sob a liderança de um homem público com visão e a vivência do presidente Fernando Henrique Cardoso é que esta questão poderá ser definitivamente resolvida.

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