São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 1994
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Face oculta de Welles chega ao Brasil

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil vai comemorar o centenário do cinema, em 95, com a publicação de livros preciosos (leia texto abaixo), mas talvez nenhum seja ao mesmo tempo tão essencial e divertido quanto a tradução de "This Is Orson Welles".
O livro reúne as sessões de entrevistas feitas pelo cineasta Peter Bogdanovich com Welles (1915- 85) entre 1969 e 72 e publicadas no ano passado nos EUA. Nessas longas conversas, interrompidas pelos projetos de um ou do outro, o autor de "Cidadão Kane" expõe detalhes saborosos de sua acidentada carreira no teatro, no rádio e, sobretudo, no cinema.
A editora Globo promete colocar a obra nas livrarias brasileiras em maio. O título mais provável é "Isto É Orson Welles".
Incluindo o caderno de fotos e uma detalhada cronologia, o volume terá umas 600 páginas, segundo Eliana de Sá, da Globo. A tradução está a cargo de Beth Vieira.
O único livro disponível em português que se poderia comparar a este é o já clássico "Hitchcock/Truffaut" (Brasiliense).
Em ambos os casos, cineastas mais jovens tentam extrair segredos e lições de seus mestres. Mas, enquanto as entrevistas entre Truffaut e Hitchcock são sistemáticas, dissecando quase cena a cena a obra do diretor inglês, as conversas entre Bogdanovich e Welles são caóticas, repletas de digressões, piadas e histórias paralelas.
Desfazendo mitos
Welles passa boa parte do livro tentando justamente desfazer a imagem de indisciplinado, caprichoso e porra-louca que o acompanhou por quase meio século.
Para isso, ele desencava detalhes inéditos dos bastidores de suas produções, desmentindo as versões correntes sobre seus percalços. Dedica páginas de conversa, por exemplo, a refutar o mito de que suas orgias carnavalescas no Rio afundaram o projeto "Tudo É Verdade" em 1942.
O que houve, diz ele, foi uma mudança repentina na direção da produtora RKO, que desistiu de apoiar o projeto –justamente quando ele próprio começava a se interessar pelo filme e pelo país.
Hoje que a obra foi parcialmente restaurada, embasbacando público e crítica com sua beleza, chega a ser doloroso ler o cineasta dizer que nunca viu um único plano que rodou no país, nem mesmo do episódio "Jangadeiros", o único que chegou a ser completado.
Arte e indústria
Para além das controvérsias, duas coisas impressionam em "This Is Orson Welles". A primeira é a quantidade de trabalhos que ele realizava ao mesmo tempo. Fosse no teatro, no cinema, no rádio ou na imprensa, ele estava sempre envolvido em mil projetos.
Nos anos que se seguiram à sua morte, vários desses trabalhos vieram à luz pela primeira vez, como os filmes "Tudo É Verdade" e "Don Quixote". Outros sobrevivem apenas em fragmentos ainda inéditos, como é o caso de "The Other Side of the Wind", seu último filme, no qual o próprio Bogdanovich aparece como ator.
A segunda revelação surpreendente do livro é o grau de incidência do acaso e do improviso em obras que hoje nos parecem "redondas", perfeitas, geniais.
Há, por exemplo, toda uma sequência no interior de um banho turco em "Othelo" (1952) que só está no filme porque os figurinos ainda não tinham ficado prontos e o prazo da produção estava correndo. "Ora, num banho turco as pessoas não usam roupas", diz Welles a Bogdanovich, entre risadas.
O livro está cheio de revelações desse tipo. Elas compõem o retrato multifacetado de um diretor consciente de que o cinema é uma terra de ninguém entre a arte, a indústria e o circo. Uma terra da qual ele sempre foi uma espécie de soberano no exílio.

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