São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Réquem para o Plano FHC

CARLOS ALBERTO LONGO

Réquiem para o Plano FHC
O ministro deixou passar o tempo sem ter percebido a gravidade da crise
Como avaliar a administração do ministro Fernando Henrique Cardoso no fim de quase um ano de gestão? Aparentemente, o seu desempenho não é muito diferente dos seus antecessores. A inflação continua subindo, os salários caindo e os juros aumentando. Não há propriamente uma definição de política econômica. Administra-se no dia-a-dia o caixa do Tesouro Nacional com medidas tópicas e superficiais. O pior é que são enormes as chances de que a conjuntura econômica permaneça igualzinha até o fim de 1994.
A adoção do Programa de Ação Imediata, a tão propalada reclassificação das contas do Banco Central e o aperto nos sonegadores eram medidas ultranecessárias, mas rigorosamente insuficientes para estabilizar os preços. Em meados de dezembro de 1993, o ministro finalmente anunciou o "seu" plano de combate à inflação. Propôs-se a reduzir o déficit fiscal de cerca de 5% do PIB para zero (não considerando a atualização monetária da dívida pública). Para tanto pediu ao Congresso que cortasse nada menos que 20% nas despesas gerais da União e nas transferências para os Estados e municípios.
Na oportunidade, nada se esclareceu aos parlamentares sobre a natureza dos cortes: educação, saúde, custeio, investimento etc.. E mais importante, tampouco se fixaram as metas de expansão monetária. O ministro recusou-se até mesmo a apostar no futuro da inflação. Se o Congresso aprovasse esse corte cavalar, criar-se-ia então um novo indexador (URV), que poderia com muita boa vontade se transformar em moeda forte.
O Congresso reagiu como se esperava. Diante de tanta improvização, pretextos para adiar a discussão do pacote é que não faltaram. A análise da proposta orçamentária de 1994 foi posta de lado porque depende de mudanças na Constituição -transferências e vinculações constitucionais, novos tributos etc.. Ademais, o pacote de fim de ano se fez acompanhar de medidas desastrosas, algumas polêmicas e outras inócuas. Também pecou por omissões injustificáveis.
A medida mais controvertida é a redução das transferências constitucionais. Óbvio que é preciso rever as liberalidades dos constituintes de 1988, mas não se deve confundí-la –a revisão– com o plano de estabilização. Uma coisa é a Constituição e outra é o plano. É igualmente no mínimo intempestivo mexer em alíquotas e faixas do Imposto de Renda, criar impostos, taxas e contribuições, de afogadilho, até porque segundo os cálculos oficiais terão reduzido impacto financeiro sobre o caixa do Tesouro Nacional.
Por outro lado, não se justificam as medidas provisórias com que o governo pretende regular a aplicação do "lucro" do Banco Central e a rolagem da dívida pública; trata-se de assunto administrativo de alçada do Poder Executivo. Do ponto de vista tributário, o plano FHC é um grande retrocesso, já que acentua a regressividade dos impostos e aumenta ainda mais o número de tributos.
A implantação da URV, a segunda etapa do plano, depende da aprovação do Orçamento equilibrado. Para zerar as contas, o Congresso tem de aprovar o Fundo Social de Emergência (FSE), mas para isso é preciso mudar a Constituição. Portanto, o sucesso do plano de estabilização depende, exatamente como nas administrações anteriores, de emendas à Constituição.
É um argumento muito frequente afirmar que a Constituição é a responsável pela inflação. Trata-se de uma dialética escapista utilizada em geral por governos fracos ou incompetentes. Veja-se, por exemplo, a quantidade de erros cometidos pelo FHC.
É falho de início qualquer plano de estabilização que não tenha para fundamentá-lo um orçamento com receitas e despesas previstas em moeda corrente. O problema não é o tamanho do déficit público, mas o realismo das estatísticas e a forma de financiá-lo. Assim, o importante não é zerar o déficit operacional, mas o governo deixar claro para a sociedade quais as suas opções de financiamento e as suas previsões de receita e despesa em cruzeiros reais. Enquanto o ministro faz no Congresso Nacional concessões enormes para negociar o seu Fundo Social de Emergência, sequer encaminhou ainda aos parlamentares a verdadeira "âncora fiscal" de seu plano.
Por que o Congresso deve colaborar nessas condições? O ministro não tem o que oferecer aos políticos. A URV não é moeda de troca. É apenas um outro indexador como a UFIR, a OTN, a ORTN, etc.. Se o governo depois de implantá-la resolver atrasar a sua atualização, como esperar que, por exemplo, o dinheiro da poupança continue onde está? A não ser forçado por medida provisória, o que configuraria confisco. Entretanto, o ministro não é autoritário e detesta casuísmos. Mas o que são afinal as MPs, o FSE e a URV?
Essa preocupação de resolver os problemas do Executivo no Congresso Nacional não é própria do sistema presidencialista. Até no regime de gabinete quem governa é o primeiro ministro. É preciso, contudo, para ser bem sucedido em seus projetos, ter idéias pré-concebidas sobre como sair da crise, planos mais abrangentes e melhor concatenados e, por último, mas não menos importante, disposição de assumir riscos. De fato, há casos exemplares de estabilização monetária que se viabilizaram do dia para a noite, com a simples troca da autoridade econômica.
De concreto mesmo, sabe-se, ou intui-se, que o ministro deixou passar o tempo sem ter percebido a gravidade da crise. Uma inflação crônica de mais de dois digitos ao mês não se resolve na base do consenso. A busca de diálogo, discurso e representações, deixou de exercer legitimamente o poder. O seu espaço político dentro e fora do governo está agora comprometido pela falta de resultados e natural ambição política.
Sem a aprovação do FSE, o ministro demonstra que está disposto a sair. Não é surpresa, pois o que se seguirá em termos de cenários para a economia até as eleições de outubro em nada deverá acrescentar ao seu invejável currículo. Ao contrário. Se houver demissão, o presidente Itamar Franco, com os ministros da casa, não terá dificuldade em continuar administrando o caixa, tergiversando no Congresso Nacional e, quem sabe, até reduzir um pouco a inflação, gastando reservas internacionais para sustentar uma política de valorização cambial.

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