São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Sobre a utilidade do crítico

LEON CAKOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se um crítico escrever para ser lido apenas depois do leitor ver o filme, como sugere o crítico Sérgio Augusto (artigo publicado neste caderno em 23 de janeiro), que tal a sua crítica ser publicada uma semana depois do filme em cartaz? Um crítico presta um serviço ao leitor ou um crítico se presta apenas a um exercício de estilo? Com quem estará a verdade nesta avançada era da informática? Antes de qualquer exercício de retórica, convém admitir que a verdade está com a velocidade informática; informações, aliás, cada vez mais acessíveis.
Eu mesmo fico curioso enquanto digito este artigo no meu "velho" 386 e resolvo perguntar ao meu micro a pura verdade. Vou digitar "true" e depois "truth" (verdadeiro e verdade) para saber como o adjetivo e o substantivo afetaram através dos séculos os pensamentos de grandes escritores. O disquete de CD-Rom chamado "Great Literature", com os textos completos de 1.896 chamados clássicos da literatura leva-me menos de dois segundos para informar que "true" aparece citada nada menos do que 1.892 vezes em peças, sonetos e poemas de Shakespeare, nas aventuras de Cervantes, tratados filosóficos, de sociologia, antropologia, ensaios teológicos etc. O mesmo disco compacto leva outro segundo e meio para me dizer que verdade é citado outras 1.404 vezes nos mesmos textos que checa.
É fascinante a velocidade com que se pode cruzar tanta informação que há menos de um ano me exigiria algumas semanas de pesquisa. Pesco no meio de tantos pensamentos um de Descartes, filosofado em 1637 na parte 4ª do seu "Discurso do Método":
"... nem tudo pode ser verdadeiro por consequência da nossa parcial imperfeição."
O crítico (é/deve ser), um insolente da razão? Um (mecenas) nobre que deifica o saber antes e mistifica o dar depois ou ele deve ser um iconoclasta, espalhar o que sabe enquanto o tempo faz das novidades fatos descartáveis. Será que já não nos basta a humilde compulsão passiva dos leitores que aceitam nos ler para serem informados?
Mas o leitor também sabe se vingar com o desdém e a indiferença com que é capaz de folhear as páginas da sua busca. Um crítico de jornal cotidiano deve se conformar com o papel de narrador e seu destaque secundário ao simples gesto de uma página ser virada e ficar para trás. A notícia é um fato, não um exercício acadêmico. A dimensão do fato está na relatividade da sua importância para cada leitor e não no espaço narcísico que ocupa sob uma assinatura.
O crítico deve exercer uma penitente disciplina diante da obra que revela a quem o está lendo, consciente todo o tempo que o seu leitor aceita antecipadamente a passiva desvantagem de não saber até onde alcança aquela verdade. A obra está sempre acima do seu crítico por pior que seja a obra. Um crítico será sempre um bom repórter se consegue prismar o seu documento num conjunto de instantâneos na vida volátil de um jornal cotidiano. As inspirações acadêmicas reservam-se às academias. Expor ao leitor provas pessoais de erudição é cingir de mágoa quem nos confia o tempo das pesquisas para informá-lo, não para humilhá-lo com atestados de ignorância.
O crítico não deve ainda revelar acessos ou furores de intolerância. Nada é dito ou feito em vão no fértil mundo da criação. Uma obra condenável deve passar pelos olhos e ouvidos de um crítico como o sacerdote registra os pecados, excessos e desvirtudes de cada época.
Os pecados e as imperfeições de hoje serão a fonte das mazelas de amanhã. E não há o tempo como antídoto melhor para corrigir os males e as injustiças cometidas na arte de cada época. Por pior que seja um filme hoje que ao menos seja visto como um documento de época. Por falar em tempo, bateu de novo a curiosidade de saber quantas vezes ele aparece citado na seleção de clássicos da literatura do CD-Rom que manuseio: 2.779 vezes. Pelo visto tempo é mais complexo que verdade na história dos pensadores...

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