São Paulo, terça-feira, 8 de fevereiro de 1994
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Congresso pode desmoralizar a democracia

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estamos diante de um novo tipo de tragédia política: a tragédia mole. Não teremos nem a dignidade de sucumbir a uma catástrofe real, pela violência de forças históricas profundas. Não. Vamos morrer por falta de "quórum". Ou, se houver "quórum" hoje, por medo que as bancadas terão da opinião pública, ficaremos semi mortos, pela desfiguração do plano econômico de FHC. Como bem comparou o "JB" num editorial, o plano parece o grande peixe de Santiago, o velho pescador de Hemingway, que chega à praia devorado e destruído pelos tubarões que lhe assaltam o barco.
O mais grave nem é o ataque ao plano. Trata-se da morte da última (ou única?) tentativa de racionalidade administrativa dos últimos anos. Trata-se da tragédia mole, de uma morte suja. Quem está sendo devorado não é FHC nem seu plano. Os políticos brasileiros estão matando o último resquício de um projeto nacional, já que nada têm para colocar no lugar. O plano FHC foi elaborado por uma equipe de alto nível que refinou a melhor herança da "esquerda" com as últimas práticas administrativas do mundo moderno.
O plano tentou conciliar um desejo social-democrata com a realidade de mercado. Tentou respiração boca-a-boca para um governo castrado pela Constituição corporativista de 88, até mesmo para preparar o país para um governo mais radical como o de Lula. O enxugamento da máquina emperrada, a "desprivatização" do Estado loteado pela "corrupção legal" dos privilégios seculares abriria caminho para exigências populares mais radicais.
Consenso impossívelNos últimos meses assistimos contudo a uma desmontagem progressiva deste ideal, à medida que o plano ia se chocando com os interesses do "Grande Mesmo" brasileiro, emagrecendo para caber na justa roupa do nosso circo fisiológico. E entre o possível e o desejado, o plano foi se adaptando à conjuntura. Por amor à democracia (ou até para provar inconscientemente sua fragilidade), FHC fez questão de jamais tentar um choque, um despautério, até nos angustiando com a saudade de uma paulada.
FHC se viabilizou em sorrisos que lhe valeram o apelido de aeromoça da catástrofe. Fez questão de convidar todas as forças para um "jamborée" democrático, co-responsabilizando-as num desejo (talvez ingênuo) de uma "entente cordiale", tentando tecer um mesmo pálio com os fios dos mais sujos ruralistas até os finos príncipes do Cebrap. O Congresso, em vez de ver nisso um desejo de consenso, tornou-se mais e mais arrogante, exigindo sempre mais a cada visita da equipe econômica, mordendo o marlin com dentadas de tubarão.
Enquanto isso, FHC tentava atribuir uma aura de estadistas aos mais sórdidos currais legislativos, que o recebiam com o olhar de surpresa que têm as prostitutas quando bem tratadas. FHC foi ingênuo talvez: achou que haveria uma réstia de transcendência nos círculos mais fisiológicos, um longínquo amor à coisa pública. Nada. Qualquer chofer de táxi tem mais espírito público que a maioria do Congresso.
O político típico brasileiro não tem fissuras; é cruel e compacto como os filmes pornográficos: a coisa é a coisa, o pau é o pau, tudo tem a solidez dos objetos mortos, não há a existência do Outro. Nossa crueldade é um fenômeno político a estudar. A impiedade do político brasileiro tem raízes sujas entranhadas numa colonização de degredados. E até um partido de origem humanista como o PT achou que tinha de cair na "realpolitik" burguesa para poder "pertencer". Acabou com o parlamentarismo e hoje podemos acusar que o PT não teve a sensibilidade de ver que o plano FHC era um avanço racional no país e que, como tal, tinha de ser apoiado.
Nunca se perdoará este bloqueio do PT à tentativa de racionalizar a administração pública. E em vez de estar abrindo caminho para o Lula, esta recusa de alianças está cavando seu enterro. Um plano decente não teve apoio do PT, porque o partido se acha contrário à "hegemonia" burguesa. Ninguém leu Gramsci.
Cascas de bananaA resposta a FHC foi um Paim provocador e uma sucessão de obstáculos e cascas-de-banana de outros, culminando no sinistro tombo de US$ 50 bilhões que os "ruralistas da morte" tentam dar num governo que quer cortar gastos. O Senado talvez vete, mas sobrarão "apenas" US$ 800 milhões para a bancada. Isto é chantagem. Isto foi uma bofetada na cara do país. Isto faz acender em nós desejos "fujimoristas", irracionais.
Esta estupidez "democrática" brasileira é simetricamente igual à ditadura que nos regeu por 25 anos. É a mesma coisa irracional, conservadora, escrachada, só que com "liberdade". O plano FHC tentou ser uma réstia de projeto nacional no ar, como uma trave de sustentação. Caindo, inicia-se o período jurássico de delírios partidários.
Talvez se inaugure hoje, com a possível demissão de FHC, um período de absoluto escracho na política brasileira, onde o caos será comandado pelos caciques de terno e suas caras cínicas. Teremos o PFL comandado pelo filho-do-papai Malvadeza (o "Malvadinho") dizendo coisas como "não podemos permitir novos impostos para o povo" quando só fizeram encurralar FHC nesta direção.
Teremos o jocundo Amin, abrindo estrada para Maluf com piadas demoníacas ("O governo fez acordo com o diabo. O diabo não cumpre a palavra"); teremos o PMDB com seu amálgama confuso de retórica social com prática clientelista, teremos o espectro do quercismo, teremos o getulismo tardio do PDT falando em "perdas internacionais", nas mãos dos estaleiros cariocas e fazendo chantagem com o dinheiro (já recebido) da Linha Vermelha, teremos todos caçando o possível candidato FHC como uma ratazana grávida, mesmo à custa da tragédia nacional.
Teremos finalmente o país entregue nas mãos do fascismo parlamentarista ao avesso, onde os congressistas têm todo o poder de veto e nenhuma responsabilidade social. e as corporações poderão se dedicar ao assalto dos últimos tostões do Estado, assalto garantido pela Constituição que não querem rever.
Os autoritarismosO Brasil vai ficar refém de uma assembléia de ratos. E nenhum rato tem projeto, a não ser manter privilégios. A revisão constitucional se fará medíocre, atendendo a cada clube fisiológico. Tudo tímido, covarde e mesquinho. E a ninguém ocorrerá que grande país poderíamos ser com uma grande revisão.
E assistiremos inermes às três formas de autoritarismo que existem neste país: 1) o militar olhando de perto a "zona" instalada 2) o delírio fisiológico do PFL, PMDB, PPR, etc nos levando a uma hiperinflação e à ruptura do pacto social 3) O crescimento do rancor albanês que o PT das bases abrigará, apontando para a "vingança" stalinista de um programa arcaico.
Com o caos que a tal "hegemonia" burguesa (ah,ah,aha) vai instalar, o PT deverá ser eleito. Com o apoio dos milicos, poderá nos aplicar um programa albanês, nacional-estatizante. Se não conseguir apoio, cai e começa de novo o ciclo militar que nos levará a uma nova "redentora", a uma nova "era seca" e , anos depois, a outra "úmida" ilusão "democrática".
E para sempre vibrarão os eternos "espasmos de mudança" que visam deixar as coisas como sempre foram aqui, na harmonia universal dos infernos. E o Brasil vai murchar por baixo disso tudo, pelo século 21 a dentro, perdendo a chance de ser um imenso gigante despertado. O Congresso Nacional está desmoralizando a democracia.

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