São Paulo, terça-feira, 8 de fevereiro de 1994
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O programa de estabilização

GONZAGA MOTA

O programa de estabilização apresentado pelo atual governo difere de uma maneira fundamental de propostas anteriores. Ele se inicia com um ajuste fiscal, como precondição para, posteriormente, poder efetuar uma reforma monetária estabilizadora. Os planos anteriores, ao contrário, instituíram inicialmente uma reforma monetária (quando não um mero congelamento de preços e salários) para somente depois tentarem partir para o ajuste fiscal –que nunca executaram.
Mais especificamente, fazendo-se uma análise do ponto de vista técnico, o referido programa comporta três fases: a) ajuste fiscal e início do processo de mudança do regime fiscal; b) liberdade de contrato com a Unidade Real de Valor (URV), que refletirá a inflação contemporânea, permitindo unificar e sincronizar o sistema de indexação da economia; c) emissão de nova moeda forte e de poder aquisitivo estável.
O ajuste fiscal é a fase inicial e mais importante do programa, pois será ele que permitirá que cesse a emissão da "quase-moeda" remuneradae com a qual hoje se financia o déficit público. Como se sabe, face à deteriorização do crédito público, o governo somente consegue se financiar através da emissão de títulos públicos de curto prazo. Mesmo assim, esses títulos são retidos pelo setor privado apenas contra a garantia de que o Banco Central lhes dará liquidez diária através das operações de overnight.
A aprovação pelo Congresso da proposta de eliminação do déficit orçamentário permitirá ao governo passar para a segunda e terceira fases do programa de estabilização, que objetivam, sucessivamente, uniformizar o sistema de indexação da economia e introduzir uma moeda forte e estável. Pretende-se, assim, alcançar a almejada estabilidade dos preços, sem choques, sem confiscos e sem quebra de contratos.
O ajuste fiscal consiste na "zeragem" do déficit público nos orçamentos de 1994 e 1995, calcado na criação do Fundo Social de Emergência. Esse ajuste se transforma numa verdadeira mudança de regime fiscal, por força do conjunto de emendas à revisão constitucional apresentadas pelo Ministério da Fazenda, que atacam as raízes estruturais do déficit do governo federal, com propostas específicas de revisão nas áreas do federalismo fiscal, da reforma tributária, da reforma administrativa, da modernização da economia e da Previdência Social. Essas propostas deverão assegurar um equilíbrio orçamentário duradouro a partir de 1996.
Conforme a mensagem complementar n.º 550, item 31, em termos da sistemática de alocação de recursos orçamentários, o fundo é uma nova fonte com destinação regulamentada na Constituição. Ele implica significativa flexibilização do gasto público, já que os recursos tornados disponíveis com essa proposta poderão ser destinados a cobrir gastos onde haja real necessidade de aporte de recursos.
Ressalte-se, ademais, que a instituição do Fundo Social de Emergência não implica a criação de novas despesas; constitui apenas uma fonte de recursos, não vinculados, que serve para atender despesas votadas no Orçamento.
Por sua vez, conceitualmente, o que o governo almeja com a "zeragem" do déficit público é obter, "ex-ante", por via da negociação política, o que a inflação lhe permitiria obter, "ex-post", por via de repressão fiscal.
Tradicionalmente, o governo tem enviado ao Congresso uma proposta orçamentária irrealista e dela recebido de volta uma lei orçamentária surrealista. Exemplo disso é a proposta que foi enviada ao Congresso em agosto último, a qual embute uma previsão de déficit (operacional ampliado) da ordem de US$ 22,3 bilhões. No curso normal dos acontecimentos, essa proposta, após emendada pelo Congresso, provavelmente embutiria, como em anos anteriores, um déficit ainda superior.
Com uma inflação que ronda a casa dos 40% mensais, seria fácil para o Executivo administrar esse eventual déficit simplesmente através da repressão fiscal, ou seja, pelo mero adiamento das despesas ou se eventual cancelamento. Isso porque os gastos estão fixados em termos nominais ou não tem qualquer indexação (no caso das despesas de custeio e de capital) ou são imperfeitamente indexadas (no caso da folha de salários do pessoal e dos benefícios previdenciários). Do outro lado da equação, as receitas estão perfeitamente protegidas da erosão inflacionária, primeiro pela "ufirização" e posteriormente pela correção monetária dos depósitos do governo nas instituições oficiais de crédito.
Assim, quanto maior a inflação, menor o valor real das despesas efetuadas para um dado valor real das receitas coletadas. Ou, dito de outro modo, quanto maior a inflação, maior o valor nominal das receitas coletadas para um dado valor nominal das despesas orçamentárias. É assim que a inflação tem ajudado, e muito, o governo a reduzir substancialmente seu déficit orçado. O déficit remanescente é financiado pelo "imposto inflacionário" gerado pela própria inflação, que se consubstancia nos elevados resultados que o Banco Central transfere semestralmente para o Tesouro Nacional.
Nessas condições, entretanto, não só o Orçamento se torna uma peça de ficção, como os mecanismos da liberação contigenciada facilitam a instalação da corrupção como forma de assegurar a obtenção de recursos do governo federal.
Por fim, vale salientar que a "zeragem" do Orçamento ataca, assim, dois problemas fundamentais do país: a inflação e a corrupção. Pois se o Orçamento já sai zerado do Congresso, o governo deixa de necessitar da inflação para poder equilibrar as despesas orçadas com as receitas realizadas. Ao mesmo tempo, os receptores do gasto público poderão obter seus recursos de forma automática, sem a necessidade de qualquer forma de pressão, lícita ou ilícita.

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