São Paulo, sexta-feira, 18 de fevereiro de 1994
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Nelson se afunda na segunda margem do rio

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Filme: A Terceira Margem do Rio
Diretor: Nelson Pereira dos Santos
Elenco: Ilya São Paulo, Sonija Saurin, Maria Ribeiro, Barbara Brandt
Sala: Espaço Banco Nacional/sala1

Embora há 30 anos sonhasse com uma adaptação do conto "A Terceira Margem do Rio", esta acabou sendo, por força das circunstâncias, uma obra de contingência -sem, no entanto, as mesmas dificuldades de "Mandacaru Vermelho", seu bate-bola para "Vidas Secas". Mutirão internacional, com aporte francês, o novo filme do nosso mais prestigiado cineasta chega hoje às telas cercado de expectativas.
Esperava-se, por exemplo, que Nelson não apenas quebraria o longo jejum do cinema brasileiro, mas também nos ofereceria um lauto "petit dejeuner" de imagens emocionantes, brasileiríssimas e culturalmente restauradoras. Ou seja, um filme bandeirante: exemplar, tonificante e norteador, quando nada por ter como base cinco contos de outro orgulho da raça, Guimarães Rosa. Ainda maiores eram as esperanças dos que vêem a carreira de Nelson como uma gangorra de bons e maus filmes, rigorosamente alternados. O que não ocorreria se entre "Memórias do Cárcere" e "A Terceira Margem do Rio" não tivesse havido "Jubiabá".
Também contou a favor o fato de o filme ter sido rodado em Paracatu, cidade mineira vice-governada por uma das filhas (Márcia) de Juscelino Kubitschek e berço dos Mello Franco, e ser uma espécie de síntese da obra do cineasta, misturando elementos de "Vidas Secas" (retirantes, Maria Ribeiro, a vaca Pitanga substituindo a cadela Baleia), "Amuleto de Ogum" (misticismo & gangsterismo), "Tenda dos Milagres" (misticismo & modernidade), "Estrada da Vida" (breguice & hiperrealismo fantástico). E também, ou acima de tudo, uma metáfora. Uma metáfora da volta do cinema brasileiro, assim resumida pelo crítico carioca Carlos Alberto de Mattos: "Como seu personagem central que aguarda confiante o regresso do pai, Nelson não desistiu de prever a volta da canoa onde um dia desapareceu o cinema nacional."
Todas essas conjecturas simbólicas são válidas, além de simpáticas, mas a verdade, nua e crua, é que "A Terceira Margem do Rio" não cumpre nenhuma de suas promessas. Muito menos a de manter inalterada a alternância de bons e maus filmes na filmografia do autor. Não chega a ser um desastre constrangedor, da estatura de "El Justicero", "Quem É Beta?" e "Estrada da Vida", mas é uma obra visivelmente menor, como "Boca de Ouro", e de circunstância, como "Mandacaru Vermelho". O que a canoa de "A Terceira Margem do Rio" nos trouxe foi uma miragem do grande Nelson Pereira dos Santos.
Ele, o grande Nelson, ou parte dele, está todo na primeira borda do filme, onde também é mais sensível a presença de Guimarães Rosa. Os três primeiros contos imbricados pelo cineasta –a família de "A Terceira Margem do Rio" cede o filho mais velho a uma peripécia de "Sequência", que por sua vez tem uma filha milagreira, como a de "A Menina de Lá"– se fundem com engenhosidade. As imagens do rio, o aproveitamento plástico da paisagem rural, o episódio da vaca Pitanga, o casamento na roça -enquanto sua câmera retrata o Brasil arcaico, com espontaneidade e singeleza, a narrativa flui fluvialmente. Mas, já nessa parte, salienta-se um defeito grave: os atores, à exceção de Chico Diaz (Rigério), representam de forma canhestra e dizem mal suas falas, afetando a credibilidade emocional de algumas cenas e comprometendo a absorção da esquisita prosa rosiana.
O que nos aguarda na segunda margem -as torpezas brasilienses, a violência urbana, o misticismo desesperado, a ganância canibalesca, a modernidade rastaquera– são mazelas que em outros filmes já mereceram abordagem mais sutil e contundente. Nelson aí erra no atacado e no varejo, com a agravante de se fiar em demasia nos guizos falsos do hiperrealismo fantástico. É particularmente ruim, porque óbvia, a cena em que as crianças de Sobradinho encenam um bangue-bangue de brincadeira no meio da rua, após uma "razzia" policial. Pior ainda, porque indício de concessão ao exotismo, é a aparição de um bloco carnavalesco, a pontuar sem mais nem menos a passagem de uma assombrosa ventania.
Quando a menina milagreira suspende suas atividades por causa do fascínio que lhe desperta a televisão, pensei comigo: agora, o filme vai explorar o choque entre duas formas de encantamento. Era assunto fértil, que Nelson desprezou. Quando o caixão da menina é carregado pelos braços da multidão, como se fosse um barco descendo um rio, pensei comigo: belo remate, rimando com as imagens da abertura e fechando o círculo navegante. Mas Nelson não resistiu à tentação de fazê-lo subir aos céus, como o balão vermelho de Albert Lamorisse e o peixe de Emir Kusturica, entregando seus últimos pontos a um tipo de fantasia que há muito já deu o que tinha que dar.

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