São Paulo, sexta-feira, 18 de fevereiro de 1994
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"Ham-let" transforma Shakespeare em Zé

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Era uma vez um príncipe nascido na Dinamarca, um de nome Hamlet, que agora renasceu aqui nos trópicos e se chama Ham-let. Surgiu da cabeça do José Celso, para inaugurar o Oficina e veio ao mundo com um hífen. O que era Hamlet ficou sendo, quando traduzido, Presunto-deixe. Já ninguém pode deixar de escutar que se trata do crime que nos ronda, do presunto e do Brasil, não é? O que era da Inglaterra, hoje também é nosso, Shakespeare virou Zé.
O fato é que a gente entra no Oficina, cujo palco não é propriamente um palco, é passarela, para ver uma peça que mais parece uma ópera, tem muito a ver com a nossa ópera de rua, o desfile das escolas de samba do carnaval. Com este Ham-let, o teatro ressurgiu evocando a festa –Evoé Momo!–; é um teatro de carros alegóricos, que não tem vergonha das vergonhas e mostra, na maior inocência, as partes baixas, porque tanto ama a cultura do índio brasileiro quanto a do texto shakespeariano.
No "Ham-let", o ator pode dizer "tupi or not tupi" pois ele não deixa de ser inglês por ser brasileiro, faz pouco da alternativa e não quer nem mesmo ouvir falar da exclusão, o seu ouro, Deus meu!, ele tira da inclusão. Nenhuma língua, da sua perspectiva, exclui a outra, nenhuma raça ou representação. O teatro Oficina não é tupi, é tubi, ou melhor, é tubiniquim.!
Nele, a tragédia shakespeariana se consuma ao som do batuque e tudo é possível: olhar sem vergonha para os seios da rainha-mãe e ver que Hamlet tinha um pau; ouvir o texto de Shakespeare como se fosse música e não ter medo de fantasma –o do pai morto– que, reaparecendo para cobrar a vingança, revela a verdade do crime.
Medo a gente tem, quando acaba a peça, do impulso assassino de matar, de quem entre nós a ele se entrega, e depois, sem mais nem menos, esconde dos outros o presunto. Deixe o presunto, é a palavra de ordem implícita no título. Deixe aí, não há como viver na impunidade eternamente.
Vá ver, e, se tiver olhos para tanto, sairá contente, rememorando o fato de ter de novo feito música com uma latinha de cerveja, que algum ator pôs na sua mão, ou de ter sido enrolado numa serpentina. No Oficina, você só entra para participar, esta é a condição. Não tenha medo de olhar e de ouvir o que no cotidiano você não olha e não vê, e o "Ham-let" vai te mostrar o que já estava no texto inglês, mas precisou de um brasileiro de São Paulo para aparecer.
Vá constatar, como diz Shakespeare, que há mais coisas entre o céu e a terra (e o inferno, como acrescenta José Celso), do que pode a nossa filosofia imaginar.

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