São Paulo, sexta-feira, 18 de fevereiro de 1994
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Novamente o extermínio de crianças

MARIA IGNÊS BIERRENBACH

Já escrevi nesta Folha sobre o mesmo tema, apontando para um novo indicador social, que a par dos já alarmantes índices de mortalidade infantil, analfabetismo, repetência e evasão escolar e, agora revestido de características macabras, vinha ajudar a revelar o retrato da combalida criança brasileira: o assassinato de crianças e jovens.
Na ocasião, comentava a pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência sobre este assunto, com base em dados de 1990, a qual apontava que cerca de 994 crianças e jovens haviam sido assassinados no Estado de São Paulo, significando uma média perversa de 2,7 mortes por dia. Comentava, ainda, a força da pesquisa, que, desvendando uma situação dramática, pretendia lançar luzes sobre este problema com o qual é impossível conviver numa sociedade que se pretenda civilizada.
De lá para cá muita água rolou por baixo da ponte. Na Câmara Federal, tivemos a CPI do Extermínio de Crianças, em 1991, presidida pela combativa deputada Rita Camata, que encaminhou diversas providências de cunho legislativo, administrativo e –inclusive– criminal e que, infelizmente, até hoje, não obteve um retorno sobre medidas efetivamente adotadas nas diferentes áreas.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção São Paulo, lançou em 1993 o livro "Execuções Sumárias de Menores em São Paulo", coordenado pelo eminente João Benedito de Azevedo Marques, que, após criteriosa investigação e depoimentos tomados em audiências públicas ou reservadas, apresenta, ainda, inúmeros laudos de exames de corpo de delito, materializando as evidências. Para todas as autoridades competentes foram enviadas cópias desse relatório, que, no entanto, permanece sem qualquer resposta.
A relevância de tantos relatórios tem servido como pretexto para que os detratores dos direitos humanos procurem minimizar a força das denúncias contidas nos mesmos, buscando se eximir das próprias responsabilidades, em vez de entender a elucidação dos fatos como um primeiro passo para o desvendamento da questão, seguida do reconhecimento claro e honesto da existência do problema, da punição dos responsáveis e do encaminhamento das soluções.
Neste ano de 1994, a Human Rights Watch/Americas (anteriormente Americas Watch), criada em 1978 e, com o peso de quem monitora os direitos humanos em mais de 70 países no mundo todo, compelida a vir ao Brasil após o massacre da Candelária, nos traz um novo relatório denominado "Justiça Final", onde, basicamente, expressa sua indignação com o persistente padrão de impunidade para os assassinatos de crianças no Brasil.
Tendo como pano de fundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, e até mesmo as dificuldades de implantação da avançada legislação brasileira, examinou em relatório a realidade de quatro Estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Espírito Santo. Ouviu representantes de órgãos oficiais e organizações não-governamentais, tendo tido o cuidado de expressar os pontos de vista divergentes e o mérito de trabalhar em cima das declarações e dos inúmeros e exaustivos depoimentos tomados, o que propicia uma visão bem brasileira, uma sistematização das diferentes correntes nacionais sobre a complexa questão.
Em torno da íntima correlação entre assassinato de crianças, violência policial e grupos de extermínio, num intrincado conluio entre o desempenho policial –no exercício ou não de suas funções– e a margem da legalidade, ou, melhor dizendo, o mundo do crime, que conduz os policiais militares a serem reconhecidos como os principais agentes agressores, desenrola-se a trama e o drama das crianças e dos jovens pobres neste país.
Num quadro de 5.644 assassinatos no período de 1988 a 1991, o perfil das vítimas preferenciais situa-se na faixa etária de 15 a 17 anos de idade, com endereços fixos nas periferias das grandes cidades, vivendo com suas famílias, trabalhando e/ou estudando, o que, ressalte-se, nem de longe significa que estejam sendo mortos perigosos bandidos como com frequência se proclama na tentativa de justificar as mortes. O disparo das armas de fogo, atingindo o tórax e a cabeça, indica a intencionalidade dos homicídios.
As raízes da violência foram situadas na pobreza e no quadro econômico recessivo. Entretanto, não deixou o mencionado relatório de captar a distorcida percepção de setores da sociedade que vêem nas crianças uma ameaça, vale dizer, nas crianças pobres, merecedoras de punição pelo simples fato de existirem e tentarem a duras penas a sobrevivência nas ruas.
E, finalmente, numa perspectiva afirmativa, preocupados em apontar possíveis saídas, com a implementação de um conjunto de medidas coordenadas e coesas, temos, dentre outras, as seguintes propostas: atribuir à esfera federal a competência policial e judicial para os assassinatos de crianças e jovens, tornando-os crimes inafiançáveis; programa de proteção às testemunhas; controle e fiscalização das empresas de segurança privada e de armamentos; revisão dos fundamentos, métodos e técnicas da polícia, com a consequente valorização profissional do policial; modernização e agilidade do sistema judicial.
Reitera, ainda, o relatório, a imperiosa necessidade de transferência da competência da Justiça Militar para a Justiça Comum dos casos envolvendo crimes cometidos por policiais militares, o que seria, sem dúvida, a pedra de toque para o encaminhamento adequado do problema e a demonstração da clara vontade política de resolvê-lo com efetividade.

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