São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Afinal, o Plano FHC tira sua máscara

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Segunda-feira de Carnaval. Nos jornais, a manchetinha simpática: "Caderneta de poupança escapa da URV". Vale dizer: a poupança continuará a pagar correção monetária de acordo com os índices de inflação hoje existentes. Não sofrerá, portanto, o "achatamento" em seus rendimentos, inevitável com o uso da Unidade Real de Valor, já que a criação da nova moeda prevê que os reajustes serão feitos pela inflação média de meses anteriores.
Para milhões de brasileiros, a manchetinha parece tranquilizadora e agradável. Mostra que o ministro Fernando Henrique Cardoso e sua equipe são sensíveis, querem evitar prejuízos aos milhões de pequenos investidores com dinheiro na poupança. Quem ler o noticiário até o final, porém, vai ver que a realidade é muito diferente. A manchetinha é simpática, sim, ao ministro e sua equipe, pois ela claramente manipula a informação, ao sugerir que a poupança vai ter um tratamento diferenciado. E não é nada disso.
A reportagem é um "furo". Traz uma síntese das decisões tomadas, em pleno Carnaval, pela equipe econômica, para implantação da URV, isto é, para reajustes de acordo com a inflação média. A poupança, como se viu, fica de fora. E as demais aplicações financeiras, de interesse dos especuladores e participantes da "ciranda"? Vamos dar a palavra ao noticiário, para que não haja dúvidas: "Demais aplicações continuam com seus indexadores atuais". E os impostos? "A Receita Federal não quer usar a URV... A Ufir pode continuar indexando os impostos"... E o Orçamento da União? "A MP manda não (sic) usar no Orçamento Geral da União".
Até aqui, portanto, estão fora do "achatamento" a poupança e todas as demais espécies de "jogos de ganhar juros", sem trabalhar um dos maiores focos da inflação brasileira. Também estão de fora os impostos e o Orçamento. Então, o que é que a URV vai achatar para derrubar a inflação? Os preços das empresas? Santa ingenuidade. A reportagem revela que "a MP fala em mecanismos de indução para a conversão dos preços de cruzeiros reais em URV". Traduzindo em português: a dupla Cardoso/Serra mantém os compromissos assumidos com os empresários. O uso da URV, isto é, os reajustes limitados pela inflação média, não serão obrigatórios. As empresas continuarão fazendo o que bem desejarem. Como os empresários brasileiros raramente cooperam –mesmo com os ministros altamente cooperativos– a equipe FHC prevê "mecanismos de indução" ou, pode-se apostar, a concessão de "prêmios", como a redução de impostos, para empresas que reajustarem preços abaixo da inflação passada.
Então, é isso. Estão fora do achatamento: o mercado financeiro, as empresas e empresários, e o próprio governo (impostos). O que sobra? Ora, caros ingênuos: evidentemente sobra a massa trabalhadora. A MP prevê que o salário mínimo será devidamente achatado pela URV. Os vencimentos do funcionalismo, idem. Os salários em geral, ibidem. E, claro, as aposentadorias mais ainda.
Então, é isso. O Plano FHC não existe. É uma grande empulhação. Está provado, pela própria Medida Provisória da equipe FHC, que seu único objetivo é achatar mais ainda os salários, os ganhos da massa trabalhadora. O resto é encenação. O ministro e seus assessores poderiam simplesmente ir à TV e anunciar ao país que, a partir de amanhã, os ganhos do trabalhador serão ainda mais achatados (não se esqueça que eles já estão sendo achatados, com os reajustes dez pontos percentuais abaixo da inflação e apenas até certas faixas. E que o trabalhador de salário mínimo e os aposentados serão outra vez massacrados, vítimas de genocídio (fome, doenças, mortes) como na fase Marcílio.
Claro que esse anúncio poderia provocar reações. Então, lança-se mão de um estratagema: inventa-se um plano mirabolante, arriscadíssimo, capaz de lançar a economia no caos. Tudo, para encobrir a verdade.
Por que a equipe FHC vai aprofundar o "achatamento"? Claro que não é por sadismo (embora o deslumbramento trazido pelo poder costume justificá-lo). A equipe FHC, simplesmente, aderiu às teorias "ortodoxas", antigamente chamadas de conservadoras, que indicam a recessão como forma de derrubar a inflação.
A sociedade não se apercebeu, mas o ministro quer levar o país a uma recessão. É aritmético. O povo brasileiro ainda não se deu conta de que, sem a obrigatoriedade da URV, o consumidor vai continuar pagando a correção monetária da "inflação velha" nas prestações da casa própria, nas mensalidades escolares, nas tarifas de ônibus, nos juros do crediário, nos contratos de aluguel, nos impostos etc.. E enfrentará a "inflação nova", de hoje em dia, nos demais preços. Tudo isso com os salários e aposentadorias devidamente achatados. Claro que o brasileiro vai comer menos. Comprar menos. Claro que o consumo vai cair, abrindo caminho a novo período recessivo. Fome, doenças, mortes.
A sociedade brasileira não precisa aceitar bovinamente esse caminho. Há alternativas para o combate à inflação –e um deles, repita-se, é a prefixação de reajustes, negociada com empresários e trabalhadores. A reação deve sensibilizar o Congresso –pois ele detém a representação popular e não meia dúzia de economistas. Para essa "virada", outros sofismas e mentiras precisam ser urgentemente rebatidos:
Salários – Há exatos 30 anos, os ministros tentam combater a inflação com o simples achatamento dos salários. O ministro Barelli, antes de ingressar na equipe tucana de FHC, chamou a atenção para o que parece óbvio, mas sempre foi ignorado nas análises econômicas: quando se retira uma "fatia" dos salários para combater a inflação, as empresas deveriam também retirar uma "fatia" proporcional do reajuste de seus preços –e a inflação deveria declinar.
Lucros – Na teoria, o "achatamento" dos salários tem sido adotado para derrubar a inflação. Na prática, as empresas continuam a reajustar preços, no mínimo de acordo com a inflação do mês anterior, ou de acordo com as expectativas da inflação futura. Resultado: a "fatia" retirada dos salários vira nova "fatia" de lucro das empresas. E a inflação, em alta.
Massacre – Estudo divulgado pelo Dieese durante a semana mostra queda brutal dos salários nos últimos anos. Na média, seu poder de compra recuou em 50%, chegando aos 70% em algumas categorias. Vale achatar mais?
Genocídio – Numa encenação eleiçoeira sórdida, ministros fingem que defendem um salário mínimo de US$ 100, outros fingem que "só dá" para pagar US$ 65. E tá tudo combinado: no final, anuncia-se um valor de US$ 80 a US$ 85 e repete-se a cantilena de que tudo foi decidido "democraticamente". É. Milhões de famílias devem até festejar. Elas vão passar ainda mais fome, é verdade. Mas tudo com "democracia" à la FHC.
Previdência – A equipe FHC quer achatar o salário mínimo alegando que se ele fosse a US$ 100 a Previdência "quebraria", já que as aposentadorias acompanham o seu valor. Mistificação. Chantagem para forçar o Congresso a aprovar mudanças na Previdência, na revisão constitucional. A verdade? A gestão Britto mostrou, nestes últimos anos, que também no caso da Previdência não há falta de recursos, e sim falta de combate à sonegação. E, ainda, excesso de "bondade" de ministros para com sonegadores, que tiveram suas dívidas parceladas em até 15 anos.
Impostos – Revelação da semana: a Receita Federal não recebeu verbas do Ministério da Fazenda, nem para imprimir os formulários do Imposto de Renda, nem para comprar o selo nos Correios. Por isso, o Leão precisa usar a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil para entregar os formulários de declaração anual. E se até esses tostões são negados, com atrasos e adiamentos previsíveis na arrecadação, o que será que está acontecendo com as verbas necessárias para reequipar, informatizar a Receita e combater a sonegação? Ao que tudo indica, persiste a política, adotada pelos ministros nos últimos anos, de destruir a fiscalização e impedir o combate à sonegação. E daí? É só aumentar impostos. E achatar os vencimentos do funcionalismo.
Nesta Quaresma, pare para pensar. Existe outro povo que aceitaria bovinamente todas essas contradições e desmandos? O brasileiro é otário? Ou é otário?

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