São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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"A Marquesa d'O" conserva sua beleza

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: A Marquesa d'O
Produção: França, Alemanha, 1976
Direção: Eric Rohmer
Elenco: Edith Clever, Bruno Ganz
Onde: hoje, às 19h30; dia 24 (quinta), às 21h30, na Sala Cinemateca (r. Fradique Coutinho, 361, tel. 011/881-6542, Pinheiros, zona oeste). Legendas em espanhol.

Existe uma arte de rir, de soluçar, de ajoelhar-se. Esses pequenos gestos cotidianos definem uma época e é a eles que Eric Rohmer mais parece dar atenção em "A Marquesa d'O", o filme que fez baseado na novela publicada pelo escritor Heinrich Kleist em 1810.
Pode-se ir mais longe: sem esses gestos, sem o cuidado quase maníaco de reproduzir a iconografia da época (a ação começa no fim do século 18) com absoluta fidelidade, esse filme não existiria. Ou seria outra coisa.
Tudo obedece ao conhecido princípio de Rohmer, segundo o qual para ser contemporâneo, ao adaptar um texto de época, é necessário manter uma fidelidade absoluta à época enfocada.
Preceito feliz. Porque a interferência do tempo presente, a tentação de "modernizar" são armadilhas fatais, que servem para datar cruelmente um filme.
"A Marquesa d'O" que a Cinemateca exibe hoje é o mesmo filme de 1976: nenhuma ruga, nenhum sinal do tempo vêm se interpor entre o espectador e o filme. E havia motivos para isso, na história da infeliz marquesa (Edith Clever), violentada (durante o sono) no mesmo dia em que a cidade governada por seu pai é invadida pelos russos. Grávida, é repudiada pelo pai, ao mesmo tempo em que um simpático oficial russo (Bruno Ganz) tenta a todo custo casar-se com ela.
É melhor não se deter muito sobre as intrincadas reviravoltas da trama, sob risco de esclarecer prematuramente os mistérios que envolvem esse estranho romance.
O importante é situar o filme em uma linha histórica. Rohmer é um cineasta católico. Não é de estranhar que todo o filme gire em torno da fé (embora essa não seja uma questão obrigatória em seus filmes contemporâneos). Não fé em Deus, mas na palavra. Tudo consiste em saber se a marquesa diz ou não a verdade. Se o apaixonado oficial russo diz ou não a verdade (quando sustenta que a violentou, por exemplo).
Estamos diante de um caso extremo. A concepção imaculada de um filho não é um fenômeno cotidiano. Mas essa é a hipótese que atravessa todo o filme. Estamos, então, no domínio do milagre (aqui apenas evocado, é verdade), como em "Ordet" do protestante Dreyer.
Mas estamos também no território do jansenista Robert Bresson. Porque a humanidade vista por Kleist/Rohmer é, essencialmente, decaída. Incapaz de crer na palavra, faz da dúvida e da descrença um sistema.
Essa tensão entre abandono e remissão, pureza e sordidez ocupa todo o filme e é levada com uma convicção tão grande que, com dez minutos de espetáculo, pode-se perfeitamente esquecer que estamos no século 20. "A Marquesa" conduz seu espectador docemente à época que mostra, desenvolvendo a idéia de Rohmer de um cinema transparente, em que nada deixe entrever o trabalho de realização do filme (não esquecer que em 76, época de semiologia e marxismo ferozes na teoria cinematográfica, Rohmer colocava-se em plena contracorrente).
Não é demais, falando de um filme que procura extrair o máximo de beleza da discrição, mencionar a fotografia de Nestor Almendros: é tão modesta e precisa quanto a mise-en-scène de Rohmer. Em ambos os casos, não falta modéstia à grandeza.

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