São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Visconti faz música com Mann

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ninguém esquece da chegada de Gustav von Aschenbach a Veneza, num barco a vapor que mal se distingue contra o céu da manhã; e ninguém esquece de sua morte, ao final, na praia do Lido, aos sons do "Adagietto" de Mahler. A identificação entre o filme de Luchino Visconti, de 1971 (em vídeo, WB Classics, 131 minutos), e a novela de Thomas Mann, de 60 anos antes, é tão forte, hoje, que só com algum esforço vai-se lembrar que o Aschenbalch original é um escritor, e não, como no filme, um compositor.
Mas essa transformação da literatura em música já aponta, de um lado, para elementos subjacentes no próprio texto; e de outro, é o que permite a Visconti a invenção de um estilo, ou a descoberta do cinema como suporte da música. Situado numa zona limítrofe, entre literatura, cinema e música, ele reencena, então, à sua maneira, as ambivalências e um significado dessa morte em Veneza.
Como uma espécie de anúncio formal de seu tema, visões de limite e "cenas liminares" vão se repetir do começo ao fim do texto de Mann. Já na abertura (eliminada por Visconti), o escritor Aschenbach, ao passar por Munique, tem sua atenção atraída por um estrangeiro exótico, entrando ou saindo "do pórtico" de uma capela, acima de uma estátua das bestas do apocalipse. Cedendo ao apelo de mudança, Aschenbach alude a uma necessidade de viajar de uma vida suspensa, sem compromisso – uma existência no intervalo, ou "Stegreifdasein". Em sua viagem até Veneza, terá a sensação de "flutuar", que não se resolve plenamente com a visão enevoada da cidade. E é naquela noite que conhecerá o menino Tadzio, de olhos "velados", voltando-se "um instante antes de cruzar a soleira". Tadzio será visto, mais uma vez, por Aschenbach no dia seguinte, "cruzando as portas de vidro" do salão. A ambivalência desses momentos de cruzamento reaparece em inúmeras variações: na separação entre maestria ou prazer, espírito e forma, vontade e corpo, moralidade e imoralidade, estética e ética, estrangeiro e local, profundidade e superfície. A linha da praia, entre a terra e o mar, é o emblema natural desse estado de passagem; e Veneza, cidade de água e um limite da Europa e do Ocidente, é o seu cenário alegórico e humano.
Aschenbach está condenado, portanto, a se conhecer a si mesmo – não pela escrita, nem pela conquista da honra, mas sim pelas vias do objeto: "Ein Elender", como definido no título de um de seus primeiros romances. O mesmo carmim que aparece nos lábios de um "repulsivo" velho homossexual, a bordo do vapor para Veneza, reaparece semanas mais tarde nos lábios de um apaixonado e "ridículo" Aschenbach. Os tigres e florestas tropicais de sua visão junto à capela retornam pontualmente num pesadelo próximo ao fim. Mas, ao que parece, ele não está sozinho. Há um narrador orquestrando detalhes desde o começo, um narrador que não é nem neutro, como poderia parecer, nem muito menos igual à consciência de Aschenbach. O momento em que este narrador se separa do autor, assumindo aos nossos olhos um caráter próprio, é o mesmo momento em que o leitor ganha, também, sua distância. A uma certa altura, torna-se visível a perícia do narrador, preparando maliciosamente expectativas, mais tarde frustradas, para seu protagonista. A lei das inversões não tira só o chão do poeta: cada leitor se verá suspenso no intervalo, numa espiral de ironias, que é a condição e a danação de todo autor e todo leitor moderno.
Motivos como esse serão cuidadosamente recriados por Visconti, mas segundo um outro critério. Mais do que a Cãmera, mais do que a imagem, é a música aqui o princípio de organização, o verdadeiro narrador do filme. A partir de tênues, mas significaticativas referências a Nietzsche no texto de Mann (que foi escrito também sob o impacto da morte de Mahler), Visconti vai construir essa elegia veneziana a partir do espírito da música. É sustentado pela música que nos fala Nietzsche, nas palavras do hino à noite musicado por Mahler, presente em vários momentos da trilha. De maneira um pouco mais oblíqua é o filósofo ainda quem está por trás da cena do bordel, extraída não de "Morte em Veneza", mas de "Doktor Faustus", onde Mann retrabalha uma memória de Nietzsche.
Outra série de ligações, em torno à palavra "esmeralda", reúne o filósofo ao compositor Leverkuhn em Faustus, que para Viaconti se confunde com o poeta Aschenbach de Mann. Um anagrama de "Esmeralda" será, para o compositor, o ponto de partida de seu mais importante motivo musical. Este motivo (baseado num intervalo de quarta e num semiton), está quase milagrosamente preservado na trilha musical escolhida por Visconti: quarta e semitom definem o "Adagietto", assim como o movimento da "Terceira" de Mahler; os mesmos intervalos aparecem na valsa da "Viúva Alegre", na canção dos músicos de rua e até no acalanto de Mussorgstky, que a hóspede russa canta, numa das últimas sequências. É um detalhe e não é um detalhe: é uma marca de identidade no filme. O mesmo semitom se escuta em "Fur Elise", que no filme serve para fazer de Tadzio um duplo da prostituta Esmeralda de Nieztsche (os dois são vistos estudando a peça, no piano). Revendo o filme, pode-se notar, ainda, com um certo choque de reconhecimento, que o nome do barco trazendo Aschenbach a Veneza é, também, "Esmeralda".
Que sentido têm essas tramas, antecipações, ou ecos? Há um elemento arbitrário e quase absurdo na constelação de referências do filme, ainda mais do que na novela. A superposição de imagens no tempo pode ser uma maneira de reforçar a "profundidade", que uma superfície, a simples aparição de qualquer coisa, ao contrário de uma palavra, não pode ter muito facilmente. Mas talvez o que este filme esteja mais perto de dizer com toda sua atenção musical a cada detalhe e cada imagem, seja precisamente o oposto, não a reprodução, mas a revelação da natureza ilusória da profundidade.
Como a novela, o filme é uma viagem aos infernos, pelos caminhos da superfície; e Visconti, como Mann, também parte a princípio do intento nietzschiano de reproduzir exatamente o que está diante de nós. É um filme hipersensível, que aspira à condição de música". Suas tomadas, longuíssimas, são uma espécie de "Adagietto" visual, como ensina Angus Fletcher, no melhor ensaio até hoje sobre o filme (em seu livro "Colors of the Mind", Harvard 1991). Aqui, e não nas discussões enfadonhas sobre estética, está o verdadeiro foco de pensamento no filme. Aqui, pelas imagens, o filme pode ler "Morte em Veneza" sem as angústias de uma mera adaptação.
Novela e filme resolvem-se, aliás, de forma muito diferente. Na novela de Mann, não há coincidência entre esta "Morte em Veneza" que estamos lendo e a obra deixada pelo escritor que morre. Aschenbach morre levando consigo idéia frustrada de literatura – frustrada, no caso, pela inversão que exerce sobre ela a própria novela de Mann. A novela de Mann é o "abjeto" de Aschenbach, uma vingança da ambiguidade, um brilho espectral cobrindo as palavras naquele ponto em que o significado desaba. Visconti, de sua parte, faz da música de Aschenbach um legado real e um ganho.
Surgida do nada, uma fonte em si mesma, do fundo escuro da tela antes dos créditos, essa música será capaz de dar nascimento ao filme, como um modelo de contexto de horizonte e presença. Visconti nos dá, aqui, a impossível transformação da imagem em música, e da música em imagens. Que essa música, mais do que qualquer outra talvez, seja uma música em vias de esgotamento e de perda, uma música dividida, só acrescenta mais uma ironia às ambivalências e ao significado dessa morte em Veneza.

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