São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Um plano Marshall para a cultura e o desenvolvimento

JAVIER PÉRES DE CUÉLLAR

A criação da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento responde a uma exigência fundamental, de natureza mais global: se não quisermos entrar no terceiro milênio com resistência, é indispensável repensarmos o desenvolvimento. Precisamos reformular a própria noção de cultura. Teremos que nos aprofundar nas relações entre cultura e desenvolvimento, coisa que nunca antes foi feita em escala mundial.
Desenvolvimento, em seu sentido original, significa desdobramento, extensão, progresso, projeção para além do ciclo dos trabalhos e dos dias. O desenvolvimento é o vir-a-ser a partir do ser, é o fato de transformar-se no que se é. Em outras palavras, o desenvolvimento não poderia reduzir-se a um simples aumento dos recursos materiais.
Hoje mais do que nunca, o desenvolvimento exige um "suplemento de alma". Para aqueles que nada têm, ter mais continua sem dúvida a ser o objetivo primordial. Mas, para todos, trata-se sobretudo de viver melhor e de viver melhor juntos. Consequentemente, é indispensável optar pela qualidade. Apostar na participação, na solidariedade.
Entendo que a comunidade internacional precisa orientar-se por uma meta comum: lançar, às vésperas do século 21, uma iniciativa mundial de crescimento sustentável sobre a base do desenvolvimento cultural. Por que não imaginar uma espécie de Plano Marshall em nível planetário, em favor da cultura e do desenvolvimento?
Existem os meios para a adoção de tais decisões. O sr. Michael Camdessus, diretor-geral do Fundo Monetário Internacional os enumerou na Cúpula do Rio. As resoluções passam pela redução dos gastos improdutivos, principalmente os gastos militares, em todos os países; por uma busca de otimização do gasto público; pelo estabelecimento de novas políticas de preços que integrem os custos não-econômicos, ambientais e culturais; a introdução de novas políticas fiscais e pela negociação de novas políticas comerciais; a destinação de recursos maiores ao desenvolvimento humano e cultural, portanto à educação, mas também à cultura; o aumento da assistência pública e uma melhor distribuição desta assistência.
Não terá chegado a hora de os países industrializados consagrarem 0,7% de seu Produto Nacional Bruto à solidariedade internacional? O combate à miséria e à pobreza se apresenta, sem dúvida alguma, como prioridade número um. O Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento Humano, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), assinala que cerca de 83% da renda mundial se encontra hoje nas mãos dos 20% mais ricos. Para os 20% mais pobres, sobra 1,4%. Na década de 1960, os mais ricos ficaram com 70% e os mais pobres com 2,3%
Certamente não se acabará com esse abismo com uma simples injeção de capitais, de equipamentos, de tecnologia e de conhecimentos especializados. O bem-estar "chave na mão" fracassou. Hoje menos de 10% da população mundial participa plenamente da vida política, econômica, social e cultural.
Consequentemente, nossa Comissão deve atribuir-se três objetivos estreitamente interligados: a promoção de novos modelos de desenvolvimento combinados com novas políticas culturais; a promoção da diversidade cultural e a promoção de uma nova dinâmica cultural de transformação social.
Estamos convencidos de que, longe de ser um simples legado, a cultura, hoje ameaçada, é nosso único horizonte comum. Não podemos ignorá-lo: nossas formas de desenvolvimento baseados na expansão contínua do consumo material não são nem viáveis nem prorrogáveis ao infinito. Não apenas elas dilaceram o tecido de que as culturas são feitas como também ameaçam a biosfera e a sobrevivência da humanidade.
A transição para o desenvolvimento sustentável impõe uma modificação radical dos estilos de desenvolvimento, que devem valorizar os valores culturais, em vez de prejudicá-los. Tanto no que se refere ao meio natural como ao meio cultural, o problema que hoje se coloca é menos o do domínio que o do domínio do domínio.
Como fez observar Carlos Fuentes na Unesco: todo projeto de futuro comum passa pela cultura, porque tudo pode desaparecer, menos ela. A difusão da cultura de cada nação passa forçosamente por um diálogo contínuo com as outras culturas, como sublinhou enfaticamente a Carta do México sobre a Unidade e a Integração Cultural dos Países Latino-Americanos e do Caribe, adotada em setembro de 1990. Mas não seria necessário ir mais longe, a partir de agora?
Um estudo da Associação Latino-Americana de Integração –que será discutido pela Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, entre 22 e 26 de fevereiro próximos, em San José (Costa Rica)– realça a importância para os países da América Latina e do Caribe da constituição de um verdadeiro mercado comum de bens e serviços culturais. Diante de um aumento das iniciativas de integração política e econômica, não deveríamos procurar o caminho para a integração cultural, com respeito à diversidade de culturas da América Latina e do Caribe?
A conclusão de um contrato social e moral autêntico, isto é, de um "contrato natural" como aquele esboçado no Rio, exige um novo pacto entre os homens: o contrato cultural. Se queremos realmente preparar o século 21, se queremos abrir a oportunidade do desenvolvimento sustentável, humano e solidário que evoquei, precisaremos modificar nossos comportamentos radical e urgentemente. Será indispensável recriarmos um fundo comum de valores compartilhados, respeitando a identidade de cada um.
As cartas do século 21 estão aparecendo diante de nossos olhos. Neste sentido, só preciso evocar a revolução científica e tecnológica, o surgimento da sociedade de comunicação generalizada, a mundialização da economia, as transformações políticas e a tensão atual entre a integração do mundo e a desintegração das nações. Os perigos e as incertezas abundam em nosso universo, que ao mesmo tempo é rico em potenciais inéditos.
É nessa perspectiva que a revolução tecnológica e econômica questiona um dos fundamentos cardinais da sociedade industrial: o trabalho. O emprego maciço das tecnologias da informação e o aumento da produtividade que caracterizam as sociedades contemporâneas são portadores de transformações sem precedentes, que exigem uma revisão radical das políticas clássicas do desenvolvimento, da cultura, da educação e da formação.
O crescimento sem criação de empregos é uma das expressões mais preocupantes. Este fenômeno, que teve início quase 20 anos atrás mas que se acelera a cada ano, não diz respeito unicamente ao Norte mas também ao Sul e à América Latina.
A paz e a democracia são outra grande proposta mundial. A cultura da paz, da democracia e dos direitos humanos constitui um todo evidentemente indivisível, assim como os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. Se hoje o tema da democracia é de importância central é porque apenas no diálogo democrático é que se podem produzir sínteses originais e diversas entre a modernidade e as culturas para chegar a estabelecer novos modelos de desenvolvimento e novas políticas culturais.
Para esse fim devemos combinar a multiplicidade das experiências e dos itinerários culturais num debate político aberto. De fato, a cultura é também para cada pessoa o meio de escolher, de rechaçar toda servidão e de preferir a reflexão ao reflexo.
É importante reconciliar quem tem a visão com quem toma as decisões, a visão com a previsão, o criador com o economista. Assim estaremos em condições de assentar as bases de um programa de trabalho para a cultura e o desenvolvimento, que permitirá completar o Programa 21, adotado no Rio de Janeiro. Um programa desse tipo, incluído em nosso relatório, levará não apenas ao plano de ação concreto, pragmático e realizável previsto em nosso mandato, mas também a propostas de reforma e recomendações sobre os mecanismos de financiamento e de execução.
Com este propósito nossa Comissão associou a suas tarefas, numa lógica de diálogo, todos os personagens concernidos pelo tema: personalidades eminentes, criadores, intelectuais, peritos especializados na questão. Entretanto, ela precisa da contribuição de todos, já que seus trabalhos são financiados por contribuições financeiras voluntárias. Noruega, Países Baixos, Alemanha, Suíça e, mais recentemente, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Costa Rica e o PNUD contraíram firmes compromissos nesse sentido, pelo montante de US$ 2,4 milhões, o que corresponde, com a contribuição da Unesco, à metade do orçamento adotado pela Comissão (US$ 5,8 milhões). Eu desejaria dirigir meu mais caloroso agradecimento a todos estes contribuintes.
É preciso, não obstante, que outros se somem ao empreendimento comum, conforme o convite que os governos reunidos na Conferência Geral da Unesco dirigiram aos Estados membros, às instituições internacionais, aos organismos de assistência ao desenvolvimento, assim como às fundações e empresas privadas.
O mundo da cultura, segundo André Malraux, "não é o da imortalidade, é o da metamorfose". Longe de ser um obstáculo à modernização, a cultura constitui, consequentemente, a chave e o horizonte do desenvolvimento, se entendemos que este último abrange toda a riqueza da experiência humana. Emerson aconselhou: "Engata teu arado a uma estrela". Que símbolo melhor poderíamos encontrar para nossa Comissão? Se a cultura se converter na estrela que orienta o desenvolvimento, se ela alcançar o primeiro escalão das prioridades do programa nacional e internacional, teremos preservado o único patrimônio ainda intacto da humanidade: a terra virgem do futuro.

JAVIER PÉREZ DE CUÉLLAR, 73, é presidente da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Foi secretário-geral da ONU (1982-92).
Tradução de Clara Allain

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