São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 1994
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A águia da Áustria fica emperiquitada

DAVID DREW ZINGG
EM VIENA

Eu dancei no Opernball de Viena ao som das gloriosas valsas de Johann Strauss, e por tê-lo feito sou hoje um homem espiritualmente muito, muito melhor.
Também tenho hoje uma ressaca por haver consumido galões do borbulhante champanhe austríaco "Sekt". E além disso tudo sou dono de um par de pés que estou pensando em destacar do resto de meu corpo e enviar ao hospital local para uma recauchutagem. Todo mundo sabe que Viena é a capital do mundo da valsa. Mas o que eu descobri –pela dura experiência– é que nem todas as vienenses são necessariamente grandes valsistas.
Pelo menos uma dama austríaca me levou à grande pista de dança do Staatsopera e começou a valsar despreocupadamente. Sua versão da valsa era interessante. Em lugar de sujar seus sapatos formais de baile no chão novo construído especialmente para esse fim, ela gastou toda sua energia dançando diretamente "em cima" dos sapatos de dança do tio Dave. Os subsequentes gritos de dor e as caretas feitas pelo velho professor de danças Dave foram interpretadas, pelos festeiros vienenses, como sinal de prazer puro e simples.
Para vocês que estão sentados no fundo da sala de aula, aqui vai uma explicação rápida sobre o que é o Opernball. Em primeiro lugar, os vienenses levam sua ópera e seus bailes muito a sério, assim como sua honra. Afinal, esta é a cidade que em lugar de nos dar Roberto Carlos nos deu Beethoven, Brahms e Mozart.
O Opernball é o baile mais famoso e mais formal do mundo inteiro. Há sete bandas, 20 mil cravos cor-de-rosa, bufês, bares e até mesmo um cassino.
Este último é para quem, já tendo gasto cerca de US$ 250 só para entrar e outros US$ 7.500 só para reservar um camarote para se sentar, ainda tem alguns schillings tilintando no bolso. O pessoal do Opernball não quer que você seja obrigado a se arrastar para casa de madrugada carregando o peso desnecessário do dinheiro.
O ponteiro do relógio indica nove horas e as portas se abrem para 7.000 pessoas vestindo fraques e vestidos longos de baile. Elas chegam em táxis, limusines e carruagens puxadas por cavalos. Muitas vêm a pé de hotéis situados nas proximidades, como o Sacher, o Bristol e o Imperial.
Tio Dave e sua Jennifer austríaca vêm de um coquetel realizado no último, o hotel mais grandioso de Viena. Para dar a vocês uma idéia da pompa local, quando minha amiga foi ao equivalente local do cabeleireiro Beka, o Hllebrand, o sr. H. perguntou se ela havia trazido "sua pequena coroa" para o cabelo. Minha amiga, que sempre se considerou princesa de nascimento, sentiu-se lisonjeada mas foi obrigada a confessar que deixara sua "pequena coroa" em casa.
Estamos dentro do salão e o baile está prestes a começar. Milhares de casais vestindo smokings, gravatas-borboleta brancas e vestidos longos, vaporosos e brilhantes, estão ansiosos para começar a rodopiar em ritmo de três por quatro, em velocidade máxima. Uma voz grita "Alles Tanzen!" Dancem todos. Isto é o Opernball, e a orquestra está tocando o "Danúbio Azul".
Mais tarde teus pés vão te matar, mas neste exato momento teu coração está saltitante de alegria.
Prazeres de um bispo
Os austríacos possuem um senso inato de sátira que faria um carioca como Millôr Fernandes começar a estudar tudo outra vez, desde o início. O Viennale –o festival anual de cinema da Áustria– deste inverno trouxe a negra sátira religiosa à atenção da mídia.
O epicentro do escândalo foi um filme chamado "Es lebe die Liebe der Papst und das Puff" (Viva o Amor, o Papa e o Bordel).
A Áustria tem seu bispo de Sankt Põlten para agradecer pelo filme. Este senhor se tornou uma figura eclesiástica proeminente aqui por três motivos: sua defesa acirrada da ortodoxia da Igreja, seu apetite desmesurado e sua circunferência avantajada. Quando foi nomeado bispo de sua diocese na baixa Áustria, acabou motivando o êxodo em massa de praticamente todos os padres progressistas de sua província.
O ator que faz o papel do cardeal teve que sofrer em nome da arte. Para ficar suficientemente recheado para o papel, ele seguiu um pantagruélico regime de engorda à base de bolinhos de abricó e risotos.
A comédia negra retrata um encontro anual entre dois irmãos. Paul, o cardeal glutão, encontra seu irmão, um desonesto traficante de armas, que sofre um misterioso ataque de impotência. A única cura possível é a absolvição dada por seu irmão, o cardeal, que a recusa.
Se a Áustria nos lembra um pouco o Brasil, pode ser por que uma sátira dirigida às autoridades é coisa tão popular por aqui quanto o é na Sambalândia. O diretor do filme, Patzak, fez um seriado de televisão sobre funcionários públicos corruptos no centro de Viena. O seriado deixou os políticos locais tão furiosos que o Partido da Liberdade Austríaca solicitou ao Parlamento que suspendesse Patzak do seriado. O diretor não foi demitido; o seriado foi tirado do ar.
Heavy metal
Como disse tio Dave recentemente, Viena é a cidade onde ele deveria ter nascido. Em vez de ser obrigado a ouvir (ou evitar) excrementos musicais da arte contemporânea como a banda heavy metal Sepultura, eu poderia ter ido à Staats Opera para ouvir o último dos grandes tonalistas, o sublime Richard Strauss.
Se você não mora a uma distância possível de ser coberta a pé da casa de ópera de Viena, você poderá ter uma idéia do que quero dizer comprando o novo CD de "Die Frau ohne Schatten", de Strauss, sob a regência de Sir George Solti, lançamento Decca. É uma experiência tão extraordinária que as palavras realmente são inadequadas para descrevê-la.
A música de Strauss marca o fim da tonalidade e o fim de uma era. Suas obras foram o ponto culminante do classicismo. Depois dele, tudo começou a dar errado no mundo da música séria. A única exceção, para tio Dave, é Arnold Schoenberg –mas ele, é claro, também é vienense. Quero nascer outra vez –aqui.
Mit schlag
Os turcos levaram o Kaffee a Viena e a arte de tomar café nunca mais foi a mesma. Com suas mesinhas com tampo de mármore, suas cortinas rendadas, seu sentimentalismo irônico e cansado do mundo, os cafés de Viena felizmente conservaram seu ambiente de elegante desespero da virada do século. De acordo com os próprios vienenses, o café (estabelecimento) só poderia existir em Viena. Os cafés são um fenômeno que é sinônimo de decadência e nostalgia, energia criativa e idéias revolucionárias. Hoje em dia os cafés continuam lotados.
Pode ser difícil encontrar um novo Freud no Stammtisch. É impossível topar com um novo Schubert anotando canções no verso de menus, mas quando beberico um Turkischer Kaffee, meu pensamento vaga até Noel Rosa e seu garçom carioca, não sei bem por quê.
Um café é um ótimo lugar para se instalar no inverno vienense, cheio de neve. Depois do cerco de Viena, no século 17, os turcos ensanguentados deixaram para trás um saco das preciosas sementes escuras. Com sua antes ameaçadora lua do Islã, também inspiraram o pãozinho do café da manhã. A verdade é que o croissant é mais vienense do que francês.
A águia austríaca
Assim como o tema de redesenhar a bandeira brasileira sempre esquenta as conversas em Brasília, a Áustria regularmente é varrida por controvérsias sobre o tema de se redesenhar seu onipresente símbolo nacional, a águia.
Na época do Império Austro-Húngaro, a águia tinha duas cabeças –idéia prudente para um país minúsculo que governava um território imenso.
O emblema atualmente vigente é uma águia negra de uma só cabeça, que agarra um martelo numa presa e um foice na outra. Para evitar confusões de Guerra Fria, também há uma corrente quebrada que –evidentemente– simboliza a Liberdade.
Alguns anos atrás alguns políticos reformistas pensaram que chegara a hora de instituir uma nova águia para evitar a possibilidade de evocar o defunto comunismo. As sugestões iniciais variavam desde um pássaro sem nada nas presas até uma águia carregando um ramo de oliveira. Não demorou para a discussão começar a beirar o delírio.
Um partido político ecológico sugeriu uma pomba. Um farrista político vienense pediu um frango assado com uma salsicha numa patinha e uma caderneta de poupança na outra.
Então os Jô Soares da Áustria partiram numa verdadeira caça às águias. Entre as idéias oferecidas figuraram uma águia esportiva montada sobre esquis e uma águia musical equipada com violino e trompete. Outros austríacos com senso de humor propuseram uma águia idosa (que ostentaria óculos e bengala), para homenagear a população idosa do país. A proposta favorita do tio Dave era uma águia que homenageava um dos esportes austríacos prediletos, o nudismo. Esta águia não tinha penas.
Mas foi muito barulho por nada. Afinal de contas, a Áustria usou o martelo e a foice pela primeira vez para simbolizar operários e lavradores, em 1918. Os soviéticos roubaram a idéia mais tarde, em 1924. Hoje a União Soviética não existe mais. Alguém precisa manter viva a tradição.

Tradução de Clara Allain

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