São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 1994
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Thomas fala pelos cotovelos em 'UnGlauber'

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Para um incrédulo, Gerald Thomas está acreditando demais na palavra. Nunca se falou tanto num espetáculo do mais visual dos diretores brasileiros. Com "UnGlauber", trocadilho com o nome do diretor de cinema Glauber Rocha, ele fecha uma trilogia que mudou a cara do seu teatro. Mas fecha sem afirmar um novo caminho, até pelo contrário. "UnGlauber" afirma a ambiguidade.
Assim é que "unglauber" significa incrédulo ou descrente, em alemão. Significa não-Glauber Rocha, contra Glauber Rocha e sua geração de crédulos. Uma geração que acreditava em alguma coisa, que ainda tinha discursos, palavras. Uma gente que podia atacar a Shell sem cair no ridículo. Hoje, diz "UnGlauber", o pior que se pode falar da Shell é que produz péssimo teatro.
Ainda assim, ele fala. E fala mais. Escreve diálogos, afinal. Escreve uma peça inteira, com direito a uma trama mais ou menos linear, o que antes era heresia para a seita dos incrédulos. Conta uma história, ainda que confusa e fragmentária, um pouco como antes, mas também a rejeição do que fazia antes. Uma peça de que é possível até escrever um resumo:
Um diretor e atores ensaiam um espetáculo. Discutem, brigam, sempre tendo como sombra, acima deles todos, o corpo do "grande ator". Falam continuamente da arte de interpretar, mas em geral de uma maneira submissa, inferior, diante do "grande ator". Como se a arte dele fosse maior. Quando o "grande ator" revive, afinal, aparecem os confrontos.
É claro que as coisas não são simples assim. Ao contrário do que era de esperar, até pelas declarações gratuitas do autor e diretor, "UnGlauber" não é uma vingança contra Glauber e os anos 60. Não faz o "grande ator" descer para ser humilhado pelos novos atores, de hoje. Não é maniqueísta. Uma prova é o solilóquio final do personagem UnGlauber, o diretor do ensaio-dentro-da-peça.
O personagem –feito por Ludoval Campos, hoje o mais constante "alter ego" do diretor em suas peças– está saindo então da morte do "grande ator" e de uma interpretação sarcástica de "All Along the Watchtower", em que finge tocar guitarra como Jimi Hendrix, uma lenda dos anos 60. A guitarra com que brinca é uma pizza. Terminada a cena, suado, debaixo de risadas, ele fala:
"Minha fala é podre e vulgar, mas aspira aos céus. E possui a danação primal. Não somos mais capazes de contar uma história. Como nosso futuro representará este presente? Com os arranhões do rap, com os cortes abruptos do 'vt', com a fragmentação dos dramaturgos e a autopiedade das instalações de arte? Rezar não posso, mas vontade não falta (...) Minha culpa mais forte derrota a minha intenção. E me mantém numa pausa quando deveria começar. Vamos, joelhos teimosos, doam. Façam-me sofrer de arrependimento. Será que poderei continuar colocando assim as minhas impressões, sem desmoralizar toda a minha geração? Será que posso manter as minhas impressões e me interessar por uma literatura linear, histórica, acadêmica, estatística? Quero dar honra ao meu presente, mesmo que não saiba como."
Um discurso franco, com as dúvidas reais de um artista que quer mudar, mas que não quer transformar-se em algum outro artista. Não quer virar Glauber Rocha, até porque não conseguiria. UnGlauber, na peça, enfrenta tragédia igual à do rei Cláudio, em "Hamlet", que tenta arrepender-se do assassinato do irmão, mas que não consegue, porque ainda quer tudo o que alcançou com o crime.
A fala inteira, aliás, é uma versão do solilóquio do rei, um dos mais belos de "Hamlet". Como acontece com o usurpador Cláudio, também o personagem-diretor de "UnGlauber" se vê preso pela pausa, incapaz de ação. Incapaz de dobrar os joelhos, numa das imagens que resumem melhor o próprio teor da peça: a incapacidade de acreditar, na forma como a geração passada acreditou.
Com tudo isso, "UnGlauber" é uma comédia. Se o autor e diretor tirou alguma conclusão, de toda a recente Trilogia da B.E.S.T.A., que teve ainda "The Flash and Crash Days" e "O Império das Meias Verdades", ela está no próprio título: "besta", além de uma auto-ironia de Gerald Thomas, virou um acrônimo para "beatificação da estética sem tanta agonia".
Sem tanta agonia, porque com humor. A origem está, é claro, em "Flash and Crash", montagem em que Thomas trabalhou pela primeira vez com a carioca Fernanda Torres. Carioca que descobriu o comediante judeu por trás do diretor germânico. A bem da verdade, não foi só ela. Luiz Damasceno e Ludoval Campos, remanescentes daquela comédia, também fizeram a descoberta.
Luiz Damasceno, talvez, mais do que todos. Em "UnGlauber", ele faz um ator que ri de si mesmo, que ri do gênero de interpretação da Ópera Seca. E que espelha a Ópera Seca melhor do que ninguém. Ele beatifica a estética sem a menor agonia, como se Ben Turpin, o grande ator das comédias mudas, tivesse caído dos céus.

Título: UnGlauber
Autor: Gerald Thomas
Elenco: Cia. de Ópera Seca
Quando: Quinta a sábado, às 21h; domingo, último dia, às 20h
Onde: Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, tel. 864-8544)
Quanto: Cr$ 2,4 mil

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