São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 1994
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Revisão constitucional e ensino público

ARTHUR ROQUETE DE MACEDO

A reforma constitucional está, após vários acidentes de percurso, em andamento. O atual Congresso revisor tem a oportunidade histórica de estabelecer mudanças capazes de assegurar a governabilidade futura do país e a construção de uma sociedade próspera, alicerçada na igualdade de oportunidades. Impõe-se agora a escolha de temas prioritários. Esperamos que o capítulo da educação não tenha a sua discussão postergada.
A Constituição Federal de 1988 garantiu avanços significativos à educação pública, os quais devem ser mantidos e aperfeiçoados. Dentre esses, consideramos fundamentais: a vinculação de receitas, a gratuidade do ensino público e a autonomia universitária.
A preservação da vinculação das receitas resultantes de impostos para manutenção e desenvolvimento do ensino é imprescindível. A revogação do artigo 212 e de seus parágrafos que asseguram a destinação de no mínimo 18%, no caso da União, e de 25%, no caso de Estados e municípios, para a educação, representaria um retrocesso e equivaleria de fato a desobrigar o Estado de seu compromisso com um dos mais sagrados direitos do cidadão.
O certo seria garantir, no texto constitucional ou na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a aplicação direta desses percentuais no ensino, ficando vedada a sua destinação a subvenções ou a atividades correlatas não prioritárias e de valor duvidoso para a formação do estudante.
A propósito, é importante que seja mantido o parágrafo 5 do artigo 218, que faculta aos Estados e ao Distrito Federal "vincular parcela da sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica". O exemplo extremamente positivo da Fundação para o Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) mostra o acerto da lei.
Com relação à gratuidade do ensino superior público, temos, juntamente com outros reitores de importantes universidades públicas brasileiras, mostrado a inconsistência dos argumentos a favor da abolição do ensino superior gratuito, bem como a falácia da argumentação de que, com parte dos US$ 4 bilhões que constituem os gastos da União com o ensino superior público, pode-se melhorar substantivamente o ensino fundamental. Corre-se, isto sim, o risco de arruinar a educação de melhor qualidade no terceiro grau sem a consequente redenção do ensino básico.
Um país pobre como o Brasil (e é justamente por ser pobre que não pode prescindir do ensino gratuito) tem na universidade pública gratuita e de qualidade a única oportunidade de promover uma real capacitação de recursos humanos bem como o desenvolvimento tecnológico sustentado, requisitos básicos para a competitividade e soberania no próximo século.
Por sua vez, a autonomia sempre foi considerada pelo ideário universitário como absolutamente necessária para a liberdade de pensamento e para o desenvolvimento do ensino, da ciência e de uma cultura não atrelada à ideologia ou ao sistema de governo dominante. A atual Constituição Federal, ao consagrar, em seu artigo 207, a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, assegura às universidades condições para um desenvolvimento planejado, sem indevidas interferências externas.
A experiência das universidades estaduais paulistas (Unesp, Unicamp e USP) nos últimos cinco anos, com a autonomia de gestão financeira vinculada a um percentual da arrecadação do ICMS, é altamente satisfatória. Esse processo determinou o aperfeiçoamento da gestão acadêmica e administrativa, sendo responsável, em parte, pelo padrão de qualidade que coloca essas instituições na vanguarda do sistema universitário brasileiro.
O atual texto constitucional deve, pois, ser mantido e, por meio da LDB, regulamentados alguns princípios básicos como a criação de um órgão coordenador, a definição de indicadores para a alocação de recursos e o estabelecimento de processo de avaliação institucional.
O órgão de coordenação, composto por representantes do poder público e das universidades e da sociedade civil, seria o responsável pela distribuição dos recursos. Esse procedimento seria ordenado mediante a adoção de indicadores aceitos mundialmente na elaboração de orçamentos universitários (número de alunos, número de vagas oferecidas, corpo docente, segmento técnico-administrativo, taxa de evasão, produção científica etc.), devendo ser considerados ainda: o estágio de desenvolvimento e as particularidades de cada universidade (manutenção de hospitais e fazendas de ensino, museus, parques etc.).
Entretanto, autonomia não pode ser entendida como soberania, como uma autarquia da universidade em relação à sociedade que a mantém. É necessária a existência de um processo de avaliação que demonstre, de forma clara e inequívoca, a competência e a correta aplicação dos recursos públicos a ela destinados.
A maioria das universidades já tomou essa iniciativa, tendo a Unesp optado por uma avaliação institucional cujo ponto de partida são os departamentos. Fundamentada em indicadores objetivos e confiáveis, essa auto-avaliação permitirá estabelecer, numa primeira etapa, um verdadeiro diagnóstico que possibilitará a correção das eventuais distorções e o planejamento futuro da instituição. Terminada a auto-avaliação, a reitoria pretende submeter os seus resultados a uma comissão composta por representantes de outras universidades e da sociedade civil. Essa avaliação externa dará, certamente, maior abrangência e isenção ao processo avaliatório.
Desse modo, a autonomia passará a ser a conquista de mecanismos que garantam à universidade a responsabilidade e a liberdade para resolver, dentro de um contexto não divorciado da sociedade, o seu modelo institucional, os problemas internos de qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão de serviços à comunidade. As universidade estaduais de São Paulo têm demonstrado a contribuição desse ideário na construção de um modelo de universidade adequado ao momento histórico e ao estágio de desenvolvimento brasileiro.

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