São Paulo, sábado, 5 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Testamento da Rainha Louca' é legado delirante de Glauber

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

A primeira sequência dá a chave do roteiro: no século 20, interior de Minas, crianças brincam na terra. O lugar é uma "fusão cinquecentenária da nossa história", segundo anotação de Glauber, que Neville d'Almeida traduziu por terras de vários tipos: "vermelha, marrom, arenosa, terra molhada, terra escura de minério".
O que vem a seguir não desmente o Glauber que se conhece, embora o radicalize. Viravante é um senador cassado pelo governo militar por corrupção, que acredita ter trabalhado sempre em favor do povo. Não hesita em se apropriar de umas tantas terras onde é encontrado minério. Como se encontra falido, busca uma associação com mr. Flower, o norte-americano, dono do dinheiro.
Sua mulher chama-se Isabel Tereza. Mas, no roteiro original, teve também o nome de Maria Tereza. Ao longo do texto, também é chamada de Carlota ou Isabel Cristina. De Isabel (a princesa que assinou a Lei Áurea, em 1888) a Carlota (mulher de d. João 6º), Maria (Maria 1ª, a rainha louca, mãe de d. João 6º), Teresa Cristina (mulher de d. Pedro 2º).
Esses fantasmas femininos da história do Brasil operam o que há de mais radical no roteiro, uma fabulosa condensação de tempo que leva o leitor-espectador a transitar por várias épocas. Ao longo do roteiro, essa tendência se deixa ver claramente. Um exemplo: embora a ação principal se passe no século 20, Isabel Tereza a horas tantas liberta seus escravos. Eles são pretos, brancos, mulatos. Uma idéia bem glauberiana: a da escravatura como estado de espírito.
As condensações de espaço são um procedimento típico de Glauber (talvez seja ele o cineasta que melhor trabalhou com elas em todos os tempos). Aqui, a ação situa-se basicamente no interior de Minas. Da fazenda pode ir a uma cidadezinha, daí a Belo Horizonte. Mas Glauber anota claramente: a casa-grande deve estar em Petrópolis (o espírito do Império).
Com a mesma desenvoltura, Glauber desdobra personagens. Assim, a prostituta tuberculosa Maria pode ser ao mesmo tempo a cantora Baby del Mar. Baby tem por apoio o jornalista Carlos da Silva, semi-analfabeto e picareta, que tenta chantagear Viravante, com o objetivo de levantar dinheiro e produzir um musical estrelado por Baby. Já Maria tem dois irmãos. O místico Pedro é seguidor do beato Assis (Chico Assis, ou Tião, ou Francisco Benedito Assis). Zé Tostão é pistoleiro a serviço de Viravante.
Essa mistura seria obviamente absurda em outras mãos. Apenas Glauber era capaz de unir tempos, espaços, personagens e situações com tamanha audácia, imprimir-lhe um tom delirante, sem deixar que as coisas degringolassem em completo "nonsense".
É difícil imaginar outra pessoa escrevendo uma sequência como a 33, onde se misturam tortura, rituais de macumba, salve-rainha, dança africana. Com personagens tão díspares quanto uma crente torturadora, um beato e um jornalista picaretas, negros velhos cantando pontos de macumba.
Em uma das páginas do original, Glauber anota uma pilha de referências com as quais certamente trabalhou em algum momento: "Fausto", "Othelo" etc. "Fausto" talvez seja a presença mais evidente (não faltam personagens vendendo a alma). Mas Jean Cocteau, com suas descidas ao inferno, também está lá.
Neville d'Almeida diz ter mexido muito pouco no roteiro original. Preocupou-se em detalhar algumas situações ou deixar mais claras certas transições de tempo. Diz, também, que transferiu para o campo alguns diálogos entre Viravante e mr. Flower que se passavam no interior da casa-grande. E, sobretudo, não suprimiu nada do que havia sido escrito por Glauber.
Neville recebeu, na verdade, um testamento de Glauber (na mesma época, um ano antes de morrer, aproximadamente, confiou a curadoria de sua obra filmada a Carlos Augusto Calil e, à mãe, sua documentação pessoal). É seu roteiro mais pessimista, marcado todo o tempo pela morte e pelo crepúsculo, pela falta de perspectiva. Tudo nele evolui para a tragédia, já anunciada no início por um soneto onde Olavo Bilac diz, entre outras coisas: "Hoje, cansada de amargura,/Minha alma se abrirá como um vulcão".
"O Testamento" é exatamente isso: um vulcão com a força de Glauber. E uma batata quente. Tem todo o seu gênio e tudo o que se tentou imitar dez mil vezes no cinema brasileiro sem passar de resultados pífios. Dirigir este filme é uma empreitada ingrata. Talvez conte a favor de Neville o fato de tanto ele como Glauber serem de origem protestante.

Texto Anterior: Ameaça de bomba conturba estréia alemã
Próximo Texto: TRECHOS DO ROTEIRO INÉDITO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.